Há 50 anos, Santos era amordaçada e perdia sua autonomia política

Tornada “Área de Segurança Nacional” em setembro de 1969, cidade ficaria sem eleger seu prefeito por quase 15 anos.

Da esquerda para a direita Augusto Rademaker, Aurélio Tavares e Márcio de Sousa Melo. Os três ministros que assinaram o Decreto Lei que tirou de Santos sua autonomia política.

Brasília, 12 de setembro de 1969. O presidente da República, marechal Arthur da Costa e Silva, estava afastado das atribuições do cargo por motivo de saúde (ele sofrera um AVC em agosto e faleceria em dezembro daquele ano). Em seu lugar, governava o país uma junta militar, composta pelo almirante-de-esquadra Augusto Hamann Rademaker Grünewald (ministro da Marinha de Guerra), pelo brigadeiro Márcio de Souza e Mello (ministro da Aeronáutica Militar) e pelo general-de-Exército Aurélio de Lyra Tavares (ministro do Exército). Os três homens, sentados diante de uma grande mesa no Palácio da Alvorada, recebiam do gabinete da presidência o Decreto Lei 865, que iria sacramentar o que já vinha sendo engendrado há bastante tempo. Para os líderes do governo insurgente, era preciso colocar uma mordaça na cidade “da liberdade”, das vozes reivindicatórias, dos santistas que insistiam em afrontar o novo regime. O histórico município portuário e praiano, na “canetada” dos ministros militares, era declarado como Área de Segurança Nacional e, assim, perdia o direito de escolher seu prefeito. Consumia-se, então, um tenebroso capítulo de um filme com diversas nuances sombrias e que iria ainda perdurar por quase quinze anos.

O 12 de setembro de 1969 foi apenas a ponta de um elenco de ações que tinha como objetivo subjugar uma das cidades mais briosas do país, protagonista nas lutas libertárias do século 19 e de direitos de igualdade social e trabalhistas ao longo daquele século 20. Santos já havia sido alvo de perseguição em outros momentos de exceção no país, como nos dois governos de Getúlio Vargas, tendo inclusive sua Câmara Municipal fechada à força (1937 a 1948) e prefeitos depostos (José de Souza Dantas, em 1930 e Antônio Iguatemi Martins Júnior, em 1937). Em 1964, durante o movimento revoltoso que depôs o presidente João Goulart, os santistas voltariam a sentir na pele a interferência ditatorial, com a cassação do então prefeito José Gomes. Em seu lugar, nomeariam o capitão-de-fragata Fernando Hortala Ridel.

Por conta dos acontecimentos de 64, os líderes do movimento revoltoso decidiram concentrar seus esforços na perseguição aos “inimigos da nação”, os comunistas. Santos foi, entretanto, momentaneamente “liberada” para promover suas eleições locais em 21 de março de 1965. Nela, saiu vencedor para o cargo de prefeito o engenheiro Silvio Fernandes Lopes. A situação parecia estar tranqüila até que nas eleições de 1968, o deputado estadual Esmeraldo Soares Tarquínio de Campos Filho venceria o pleito.  E ele, definitivamente, não era a aposta do regime.

Esmeraldo Tarquínio e Silvio Fernandes Lopes se reunem para combinar uma transição que não aconteceria.

Esmeraldo Tarquínio

Tarquínio era extremamente popular na cidade, principalmente entre as camadas mais humildes e os trabalhadores do porto. Negro, de origem pobre, era um exímio cantor (eram famosas suas participações nos bailes da Humanitária) e homem de grande inteligência. Formado em direito, chegou a trabalhar como despachante aduaneiro e jornalista antes de eleger-se a um cargo público pela primeira vez, em 1959, como vereador de Santos pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). Grande orador, seus discursos acalorados e ações contundentes o fizeram ganhar uma cadeira na Assembléia Legislativa de São Paulo em 1962, como candidato do Movimento Trabalhista Renovador (MTR). 

Daí veio o Golpe de Estado, em março de 1964. Tarquínio, embora crítico do novo regime, acabou poupado das primeiras cassações. Porém, passou a ser constantemente vigiado de perto pelos homens do Departamento de Ordem e Política Social (Dops). Em 1965, sem receio algum, arriscou sua primeira candidatura à Prefeitura de Santos, disputando o cargo com Silvio Fernandes Lopes. Inicialmente teve seu registro cassado, mas recuperou sua condição de candidato após longa batalha jurídica.  A campanha municipal de 65, no entanto, não lhe sorriu com a vitória, mas serviu de aprendizado. O deputado saiu fortalecido e ainda mais popular daquele processo. Acabou reeleito à Assembléia em 1966, como o quarto parlamentar mais votado no Estado de São Paulo, e tornava a bater de frente com os militares.

O presidente marechal Arthur Costa e Silva.

Decretos intervencionistas

O país andava mergulhado em crises institucionais. No dia 15 de março de 1967, Humberto de Alencar Castelo Branco deixava a presidência, dando seu lugar a Arthur da Costa e Silva. Era o começo da fase mais dura do período de intervenção. Dois dias antes da posse do novo presidente militar, era promulgado o Decreto-Lei 314, que estabeleceu o conceito de “inimigo interno da nação”, reforçando a efetividade da criação de áreas de segurança nacional. Os santistas escapariam da primeira leva de cidades que tiveram seus direitos de autonomia privados. Cubatão, não. O município industrial sofreu em 4 de junho de 1968 o duro golpe de perder seu direito a escolha do prefeito.

A eleição municipal de 1968

Ainda que antevendo a possibilidade de sofrer, também, uma intervenção, o meio político santista seguiu em frente, e preparou normalmente a campanha para a substituição de Fernandes Lopes na Prefeitura. Os candidatos, então, se organizaram, tendo Tarquínio como franco favorito. Naquela eleição, duas novidades: a obrigatoriedade de chapa dupla, prefeito e vice sendo votados juntos, ao contrário do pleito anterior, onde se podia votar no candidato e prefeito separadamente do vice-prefeito; e o bipartidarismo, implantado a partir do final de 1965, com a permissão de atuação eleitoral apenas para dois partidos: a Arena (Aliança Renovadora Nacional), formada por conservadores apoiadores do regime militar e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), com os opositores. Tarquínio se juntou ao MDB e chamou o veterano vereador Oswaldo Justo para ser seu vice na campanha santista. Ambos deram um banho nos adversários, levando quase 40% dos votos válidos da cidade. 

Cassação, renúncia, intervenção e perda da autonomia

A vitória do homem que afrontava o regime e tinha um prontuário substancioso no Dops irritou a cúpula militar em Brasília. Tarquínio ganhou, mas não levaria. Assim, depois de analisadas as denúncias contra o “comportamento subversivo” do prefeito eleito de Santos, o Conselho de Segurança Nacional (CSN) cassava o mandato do deputado Esmeraldo Tarquínio em 13 de março,  suspendendo seus direitos políticos pelo prazo de dez anos. Nesta condição, ele estava impedido de assumir a Prefeitura santista. O vice, Oswaldo Justo, acabou renunciando, em 28 de março, mesmo estando juridicamente apto a assumir o posto. Era tudo o que o regime desejava para definir a intervenção.

O presidente Costa e Silva, então, nomeou um homem de sua absoluta confiança para o cargo vago, o general Clóvis Bandeira Brasil, em 10 de abril (ele assumiria de fato no dia 28 do mesmo mês).

Os jornais da cidade até chegaram a publicar sobre a possibilidade de a intervenção ser temporária, com novas eleições a serem marcadas para 15 de novembro de 1970. Mas isso não teria a menor chance de acontecer. Em 12 de setembro, a canetada da junta militar colocaria uma pá de cal nesta esperança. E a cidade viveu este drama político por muitos anos, só findado em 9 de julho de 1984. Mas esta, já é outra história.

Oswaldo Justo (vice-prefeito eleito) e Esmeraldo Tarquínio (prefeito eleito), em dezembro de 1968, na diplomação.
O general Clóvis Bandeira Brasil no ato de posse do cargo de prefeito-interventor de Santos, em abril de 1969.