Também conhecida como Vênus Negra, Josephine, além de ícone da cultura pop dos anos 1920, foi pioneira no ativismo contra a segregação racial, tendo sido o primeiro negro e mulher a ser sepultado no Panteão de Paris.
Santos, 21 de maio de 1929. Era uma agradável manhã de terça-feira, quando o imponente transatlântico “Conte Verde” da Lloyd Sabaudo completava mais uma de suas frequentes paradas no movimentado cais do armazém 17, no principal porto do hemisfério sul do planeta. Porém, o dia prometia uma agitação incomum devido à expectativa gerada por um grupo de curiosos repórteres. A busca por uma entrevista exclusiva com a aclamada “Deusa Negra”, Josephine Baker, renomada por sua celebrada presença nos palcos europeus, estava no centro das atenções dos jornalistas. Desde o início do ano, os murmúrios sobre a passagem da talentosa cantora e dançarina norte-americana, cujas performances arrebataram Paris, ecoavam pelas ruas da cidade de Santos. Até mesmo um importante estabelecimento comercial local, a “Casa Excelsior”, explorava a aguardada visita a fim de promover sua liquidação anual: “Josephine Baker vira a Santos com o exclusivo fim de escolher presentes para seus admiradores na Casa Excelsior, à rua General Câmara, 24, cuja liquidação anual é o maior acontecimento destes últimos tempos”.
De fato, a chegada da “Vênus Negra” (outra alcunha da artista na imprensa mundial) se tornara um grande acontecimento, aguardando tão ansiosamente que, pouco mais de dois meses antes, em 19 de março, dezenas de pessoas haviam se dirigido ao porto santista por acreditar que a estrela internacional estava a bordo no navio “Conte Rosso”, transatlântico pertencente a mesma companhia italiana do “Conte Verde”. Entre os ávidos fãs estavam vários jornalistas, inclusive da capital bandeirante. Qual não foi a decepção quando souberam que Josephine, na verdade, não estava a bordo. O periódico “Praça de Santos”, contudo, não desperdiçou a viagem e estampou em manchete: “Josephine Baker ‘quasi’ passou ontem pelo Porto de Santos”. O jornal ainda aproveitou, claramente buscando chamar a atenção de seus leitores, para publicar uma entrevista fictícia com a artista.
Antecedentes
Em 1927, Josephine já era celebrada na imprensa mundial e em Santos, os cinemas exibiam com destaque o filme de enorme sucesso estreado pela dançarina naquele ano: “O despontar de uma Estrela”. Em agosto de 1928, a imprensa dava como certa a sua vinda ao Brasil, o que parecia ser um alívio para o setor teatral no país. Especialistas em cultura daquele período alegavam que a renovação no teatro se tornava cada vez mais necessária, tanto em termos de repertório quanto de artistas. E, embora alguns fossem interessantes e valiosos, a maior parte não estava sendo capaz de proporcionar a inovação verdadeiramente excepcional que se esperava no Brasil. Daí o alarde pela hipotética visita de Josephine, cuja vinda era tida como uma grande “luz transformadora”. Ocorre que ninguém sabia de onde surgira o convite, ou se a decisão de vir à América do Sul partira da própria norte-americana. O cronista de teatro do jornal “Praça de Santos” escrevera na edição do dia 13 de agosto: “Sempre é curioso saber-se de que maneira se conseguiu ou se está conseguindo a vinda de Josephine Baker ao Brasil. A iniciativa adveio dos empresários Velasco e José Loureiro? Pretendem ambos que a “tornée” da grande Companhia Hespanhola de Revistas Velasco, este ano, no Brasil, assumisse proporções extraordinárias, lembraram e concertaram a ideia de se incluir no elenco espanhol, com seus famosos números de danças modernas, a não menos famosa “estrela” negra Josephine Baker. O difícil, entretanto, não era ter essa lembrança: era torná-la comercialmente realizável, porque Josephine Baker está habituada ganhar tanto ou mais, por uma noite, do que os renomados artistas da cena lírica, que são os mais caros compromissos teatrais, mesmo incluindo nestes a “blague” dos ordenados que percebem os artistas de cinema”.
Enfim, Brasil
Depois de tanta espera, finalmente no dia 20 de maio, notícias vindas do Rio de Janeiro, davam conta da passagem entusiasmada, e meteórica, de Josephine Baker pela capital brasileira. Ela estava ao lado do seu então marido, o conde (autoproclamado) Pepito Abatino. Os cariocas a descreveram como “uma mulher franzina, com grandes olhos de veludo e pele acobreada. Estava vestida, da cabeça aos pés de vermelho fosco. Apenas ao pescoço trazia uma pele de cor negra. Risonha e afável, falava um francês carregado no “r”, com ligeiro sotaque britânico. E era muito agradável aos jornalistas, a quem dizia serem seus melhores “amiguinhos”
No dia seguinte, 21 de maio, a Vênus Negra chegava a Santos. E lá foram novamente os repórteres dos principais jornais de São Paulo ao armazém 17 do Porto de Santos, sonhando em entrevistar, desta vez de verdade, a celebrada artista.
No entanto os jornalistas foram surpreendidos, mas desta vez com a informação de que a Josephine não tinha pretensão de descer do navio e tampouco subir ao tombadilho do convés para acenar ao povo santista. E tudo Isso porque o navio chegara à região no início da manhã e a artista adotara hábitos parisienses de não levantar-se cedo. Ela só pretendia deixar sua cabine na “hora protocolar”, 11 horas, conforme informara seu marido, Pepino Abatino. O problema é que o “Conte Verde” faria uma escala bem curta em Santos, de poucas horas, e para os jornalistas de Santos e São Paulo, era tudo ou nada. Foi aí que veio a surpresa. Abatino disse que Josephine estava disposta a recebê-los em sua própria cabine.
Na entrevista, conhecimento sobre a cidade de Santos
Ao entrarem no amplo e luxuoso espaço dedicado à estrela de Paris, os repórteres encontraram Josephine vestida num amplo quimono futurista. Ela estava recostada em um divã, observando os convidados como se fosse um belo animal exótico, envolto em um “cocktaille” de cores malucas. Quando todos estavam acomodados, ela se levantou, estendeu as mãos aos jornalistas e sorriu, com o mais cenográfico de seus sorrisos. A conversa, então, teve início, na língua francesa.
– Alô, Josephine! – disseram os jornalistas
– Estou encantada com a sua saudação. – respondeu a artista
– Aqui, você é nossa velha conhecida. – arriscou um dos repórteres, com um francês arranhado, mas entendível.
– É certo. Conheci muitos brasileiros em Paris. E tenho até alguns endereços aqui de Santos.
– Pode nos mostrar, Josephine? – perguntou o jornalista de A Tribuna, curioso para saber quem era os amigos santistas da Vênus Negra.
– Oh! Não… Seria uma indiscrição. – ela retrucou com amabilidade.
– Você faz bem. – respondeu o mesmo jornalista.
– Posso adiantar apenas que se trata de nomes respeitáveis. – emendou a artista com um sorriso no rosto. Em seguida, Josephine não segurou uma gargalhada, ampla, sonora, que explodia de seus lábios.
– Ainda não vi nenhum desses amigos. Também não saí daqui no navio. Do Rio de Janeiro ainda telegrafei a alguns pedindo que trouxessem as frutas da terra para bordo. Dizem que aqui há verdadeiros fenômenos. Mas até agora não apareceram.
– Josephine, quando você pensa em voltar? – perguntou o jornalista do Estado de São Paulo, sabendo que o destino daquela viagem era Buenos Aires.
– Depois da temporada que realizarei no “Austral” (da capital argentina). Dali irei à Montevidéu e, depois, então, virei conhecer mais de perto esta bela terra brasileira, com o que tanto simpatizo já. Levo um repertório de canções, de bailados, e de “black bottons”. Espero agradar.
– E agradará, Josephine, porque você é o número mais sensacional do século. – disse em tom bajulador um dos convidados da imprensa.
A artista deu um sorriso de modéstia.
– Não lhe pergunto qual a sua impressão de Santos, por que você ainda não viu nada. – continuou o jornalista.
– Mas posso dizer que é a melhor possível. Pelo que me informaram os amigos de que já lhe falei, isto é uma terra estupenda. Os bananas aqui são fabulosos. Gostaria de ver um cacho de bananas. Disse-me, uma vez, em Paris, o Roberto Simonsen (empresário santista, dono da Companhia Construtora de Santos), que chegam apesar 500 quilos.
– Ele disse? É, então deve ser. – comentou um dos jornalistas, sabedor da influência e importância de Simonsen.
– Mas, o que me interessaria ver, em Santos, era uma queda do Monte Serrat. Quando cai? (Claramente Josephine se confundiu sobre a tal queda do Monte Serrat, acreditando se tratar de uma cachoeira, quando, na verdade, fora uma queda de barreira ocorrida em março do ano anterior, causando mais de 80 mortes, sendo considerada a maior tragédia da história de Santos).
– Todos os dias de chuva. – comentou ironicamente um dos repórteres, porém, não repercutindo o assunto para não criar constrangimentos.
– Então na volta vamos a ver isso, não é Pepito? – Josephine olha para o marido. O barão entalou, no olho sinistro, o monóculo estendeu a estrela uma coleção de fotografias concordando, sorridente.
– É. não podemos perder esse espetáculo.
Josephine, então, começou a autografar as fotos, com dedicatória a todos os presentes. Depois voltou a perguntar.
– Você pode me fazer um favor? – questionou a artista
– Quantos queira, você, pedir, Josephine. – respondeu um dos jornalistas.
– Então entregue esses retratos a esses amiguinhos ingratos, que não se dar o trabalho de vir me ver. – disse de forma jocosa, entregando os retratos ao convidado.
Foi então que Josephine se levantou e despediu-se dos jornalistas com um sorriso e apertos de mão. O barão acompanhou a comitiva até a escada do navio.
O jornalista que ficou de posse das fotografias autografadas, curioso, decidi olhar quais eram os destinatários. E resolveu publicar em seu jornal as dedicatórias:
“Mon Cherry ami Major Belmirô” (Meu querido amigo major Belmiro) – Trata-se de Belmiro Ribeiro de Morais e Silva, sócio de Simonsen, prefeito de Santos (1911/1914 e 1917/1920) e pessoa que deu nome à Vila Belmiro.
“Mon Vieux Prf Isaltinos de Bragança” (Meu velho Professor Isaltino de Bragança)
“Mon petit maitre Albertinô Farmalicon” (Meu pequeno mestre Albertino Farmalicon)
“Mon vicieux Jean Salermô” (Meu vicioso Jean Salermo)
Apesar da promessa, Josephine Baker não retornou a Santos para ver a “Queda do Monte Serrat”, mas certamente, quando deixou o porto, no final daquele dia 21 de maio de 1929, observou de longe a famosa cidade santense, de tantas glórias e lutas, e sentiu orgulho por ter tido essa grande oportunidade.
Quem foi Josephine Baker?
Josephine Baker, nascida como Freda Josephine McDonald em 1906, foi uma proeminente cantora e dançarina norte-americana, tornando-se cidadã francesa em 1937. Reconhecida como a “Vênus Negra” e a “Deusa Crioula”, destacou-se como a primeira grande estrela negra nas artes cênicas. Sua infância incerta e marcada pela miscigenação racial influenciou sua carreira precoce como dançarina de rua, levando-a a atuar no vaudeville de St. Louis Chorus aos 15 anos. Em 1925, sua estreia em Paris, no Théâtre des Champs-Élysées, a catapultou para o sucesso, tornando-se a estrela principal da Folies Bergère com performances ousadas, como o icônico traje de saia de bananas.
Durante a Segunda Guerra Mundial, desempenhou um papel crucial na resistência francesa contra a ocupação nazista, agindo como espiã. Após a guerra, recebeu honrarias por sua coragem e heroísmo. Nos anos 1950, utilizou sua influência para lutar contra o racismo e apoiar o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos. Além disso, adotou 12 órfãos de diversas origens étnicas, chamando-os de sua “tribo arco-íris”, e tinha um guepardo de estimação chamado Chiquita. Sua vida foi marcada não apenas pelo brilho nos palcos, mas também por suas notáveis contribuições para a resistência, a igualdade e a compaixão pelas crianças desfavorecidas. Josephine Baker foi homenageada como a primeira pessoa negra sepultada no Panteão de Paris.