Compositor da ópera “O Guarany” ficou três dias sendo velado na Igreja do Carmo, antes de seguir para Campinas, sua terra natal, onde foi sepultado
Santos, 21 de outubro de 1896. Eram 8 horas da manhã quando o paquete “Itaipú” transpôs a Barra da Entrada de Santos, trazendo, a bordo, o corpo de um dos mais importantes personagens históricos de seu tempo, um maestro e compositor celebrado em todo o mundo, glorificado como um dos grandes gênios da música erudita. A cidade santista estava alerta, aguardando, comovida, a chegada de Carlos Gomes, autor da famosa ópera “O Guarany”, cuja grandeza conquistara os maiores palcos da Europa, entre eles o Teatro Alla Scala de Milão, casa do consagrado Giuseppi Verdi que, por sinal, se tornara seu admirador, a ponto de dizer “Questo giovane comincia dove finisco io!” (“Este jovem começa onde eu termino!”). Entretanto, e infelizmente, não fora assim que o destino desenhou a trajetória de ambos. Enquanto o maestro brasileiro morreria em 16 de setembro, pouco mais de um mês antes, aos 60 anos de idade, Verdi faleceria apenas cinco anos depois, em janeiro de 1901, aos 87 anos.
Ao longo das praias, nas pontes, nos morros, milhares de pessoas aguardavam a chegada dos despojos do ilustre campineiro. Logo que o “Itaipu” foi avistado, ainda na Barra, 8h30, o telégrafo semafórico do Monte Serrat avisou a cidade. Os sinos das igrejas começaram a dobrar em honra ao finado maestro. Uma hora e meia depois de atravessar o canal do Estuário, finalmente o vapor nacional atracava no cais da Alfândega, diante de uma multidão extraordinária. O “Itaipú” vinha escoltado por lanchas da Capitania, onde se encontravam o próprio capitão dos portos e um médico sanitarista, medida ainda padrão para uma cidade que começava a se livrar de suas crises epidêmica. O contingente enorme de pessoas aguardava em silêncio a chegada do féretro de Carlos Gomes. Diante do navio, no solo, mais de vinte marinheiros e guardas da Alfândega, trajados de branco, formavam uma espécie de guarda de honra, especialmente montada para aquela triste ocasião.
Antes do corpo descer à terra, várias autoridades subiram a bordo do vapor, entre eles o inspetor do Alfândega, o comandante da Polícia Portuária, e alguns oficiais do regimento de polícia, juízes da Comarca e de membros da Câmara Municipal de Santos e da imprensa, não só local, mas da capital paulista, de Campinas e de Belém do Pará (onde Carlos Gomes vivia desde abril daquele ano). Ali estavam, entre os tantos representantes da imprensa, os jornalistas Lisboa Júnior, Canditio Brill, Rodrigues Liros, Arthur Guaraná, Arthur Aguiar, Theophilo Barbosa, Tancredo do Amaral, Heitor Peixoto e Ângelo Strota. Ainda subiram a bordo representantes da Faculdade de Direito de São Paulo, do Clube XV de Santos e do Clube Carlos Gomes, de Campinas.
Não podiam ser mais solenes nem mais revestidas de imponência as manifestações que os santistas protagonizaram em memória do maestro Carlos Gomes. Todas as casas exibiam em suas sacadas algo que remetia aos feitos do grande compositor. As bandeiras dos estabelecimentos públicos e particulares, cobertas também de pesado luto, permaneciam a meia haste; os combustores da iluminação pública achavam se todos acesos e envoltos em crepe.
Coube ao representante da imprensa fluminense, Paranhos Pederneiras, do Jornal do Commércio, constituído presidente da Comissão de Imprensa do Rio de Janeiro, a honra de entregar aos paulistas os despojos de Carlos Gomes. A missão de conduzir o féretro até Campinas coube ao seu colega, Theophilo Barbosa, do Correio Paulistano. Também fez uso da palavra o jovem estudante da Faculdade de Direito de São Paulo, José Maria Whitaker, de 18 anos (personagem histórico que se tornaria duas vezes ministro da Fazenda, nas gestões de Café Filho e Getúlio Vargas; governador interino de São Paulo, presidente do Banco do Brasil e Presidente da Associação Comercial de Santos, em 1910).
Depois da cerimônia, o corpo de Carlos Gomes foi retirado do “Itaipú”, onde estava em uma “Câmara Ardente” e foi depositado em uma carreta, que o conduziu até a Igreja do Carmo. O veículo utilizado foi enviado do Rio de Janeiro e era o mesmo que foi utilizado em 1879 para conduzir ao cemitério o corpo de Manuel Luís Osório, o Marques do Herval, líder importante do país na Guerra do Paraguai.
O cortejo deu uma volta pela cidade, passando pela Praça da República, rua Senador Feijó, rua e Largo do Rosário, travessa de Santo Antônio e ruas Quintino Bocaiúva e XV de Novembro, até chegar ao Convento do Carmo, edificação de 1631. Ao longo do caminho, tocavam peças fúnebres as bandas do 3º Batalhão, Lyra Comercial e Irmãos Trindade.
Cerca de três mil pessoas acompanharam o féretro, notando-se muitas sociedades com seus estandartes enlutados. Quando o corpo adentrou à Igreja, o reverendo Cônego Luiz Alves da Silva produziu eloquente discurso.
O caixão em que estava encerrado o corpo do maestro pesava 600 quilos e foi tirado à mão por vários homens que acompanhavam a cerimônia, sendo ele depositado num rico catafalco construído na Igreja do Carmo. E ali ficou Carlos Gomes, de onde apenas sairia por ocasião da sessão cívica, que acabou sendo realizada no teatro “Guarany”, onde foi tocada a ópera mais famosa do maestro, justamente a que inspirou o nome do espaço teatral. Durante três dias, os santistas continuaram suas romarias até o Carmo para dar adeus ao grande homem da música, mesmo embaixo do tempo ruim que se abateu sobre a cidade naqueles dias de outubro.
O corpo de Carlos Gomes deixou Santos no dia 24, às 7h50 da manhã, embarcando em uma composição da São Paulo Railway, rumo à capital paulista, onde ficaria por mais um dia, antes de prosseguir viagem para Campinas, onde o maestro, enfim, foi sepultado.
Curiosidades
O paquete “Itaipu”, utilizado para transportar o corpo de Carlos Gomes, de Belém do Pará até Santos, foi fretado pelo governo federal junto ao seu armador. Ele foi transformado em cruzador com as insígnias de capitão de mar e guerra. A bordo foi enviado um destacamento de praças de infantaria de marinha e outros marinheiros nacionais.
O corpo de Carlos Gomes foi embalsamado em Belém (Embalsamamento – ou embalsamação – é uma técnica de preservação de cadáveres para prevenir a putrefacção), para que pudesse resistir à viagem de navio até Santos e, de lá, até Campinas, o que de fato durou quase 40 dias.
Durante sua passagem por Santos, foi feita uma máscara mortuária do maestro, como registro de sua existência. Este objeto ficou por anos sob a posse de uma pessoa grada da cidade e doado ao Instituto Histórico e Geográfico de Santos nos anos 1940, onde está até hoje.
Quando tinha 23 anos de idade, em 1859, Carlos Gomes fazia sua primeira passagem por Santos. Ele chegara do interior, de Campinas, sua terra natal, montado no lombo de um burrinho, fazendo uma penosa marcha pela Serra do Mar. Seu destino era o Rio de Janeiro, onde esperava ser recebido pelo Imperador D. Pedro II, que era considerado um amigo e protetor dos artistas. E acabou, de fato, sendo recebido. Gomes já tinha uma certa fama em São Paulo, onde compôs diversos hinos. Em Santos, o futuro maestro embarcou no navio Piratininga e, assim, fora buscar seu sonho.
Mini-Biografia
Antônio Carlos Gomes nasceu em Campinas em 11 de julho de 1836. Filho e irmão de maestros, desde cedo revelou seus pendores musicais. Estimulado e amparado pelo Imperador D. Pedro II, frequentou o Conservatório Musical do Rio de Janeiro. Em 1861 regeu sua primeira ópera “A Noite do Castelo”.
Ainda no Rio de Janeiro compôs a sua segunda ópera, “Joana de Flandres” (1863), obtendo, então, uma bolsa para estudar na Itália. Diplomou-se como maestro-compositor no Conservatório de Milão em 1866. Alcançou o ápice da carreira artística com sua ópera “o Guarany”, levada à cena no teatro Scala de Milão, em 1870. Escreveu ainda notáveis peças musicais, como as óperas “Fosca” (1873), “Salvador Rosa” (1874), “Maria Tudor” (1878), “O Escravo” (1889), “Condor” (1891) e o poema “Colombo” (1892).
É considerado o maior gênio musical das Américas. Morreu em Belém do Pará em 16 de setembro de 1896, sendo seu corpo conduzido para Campinas, onde foi sepultado. Em 2 de julho de 1905 seus despojos foram retirados do cemitério e depositados em uma urna colocada dentro de um monumento-túmulo, na Praça Bento Quinino, centro de Campinas.