A primeira partida de futebol da história de Santos foi disputada na praia, com traves de bambu, uma bola nada redonda e jogadores de terno e gravata.
Santos, domingo, 1º de novembro de 1902. Eram exatamente 8h30 de uma manhã serena e agradável na praia da Barra, no trecho defronte à velha capela de Santo Antônio do Embaré, quando vinte e três rapazes, alguns elegantemente trajados, formavam um grande círculo em torno de uma estranha esfera de couro, trazida à presença de todos por Henrique Porchat de Assis, o “Dick Martins”, entusiasta de um esporte que conquistava, desde as décadas finais do século 19, o interesse da juventude paulista, carioca e de alguns outros pontos do Brasil, mas que ainda se mostrava praticamente desconhecido aos santistas. Era o tal “football”.
E agora, Dick, como é que se joga isso?, perguntaria Lucas Fortunato, um dos presentes, totalmente alheio às regras daquele jogo oriundo de terras inglesas. Os jovens se entreolhavam. Haroldo e Vitor Cross, filhos de britânicos, por ainda entenderem um pouco do assunto, então decidiram tomar a dianteira da situação e explanar aos amigos alguns fundamentos básicos do futebol, em especial sobre seus objetivos (marcar gols) e em relação às posições dos atletas em campo.
Após a curta preleção, que durou pouco mais de dez minutos, todos se sentiram prontos para a disputa. O campo já estava preparado desde o dia anterior. Henrique Porchat, morador das redondezas e mentor da brincadeira, havia fincado na areia da praia, com a ajuda de alguns de seus companheiros, as duas primeiras traves do futebol santista, feitas de bambús. Da mesma forma, o entusiasmado jovem mandou limitar o campo, nas medidas oficiais, com quatro pequenos mastros, também feitos de bambús, dotados de bandeirinhas nas pontas, cuja função era a de assinalar a posição dos “córners”, além das linhas laterais e fundos do campo.
Jogadores chiques
Os moços, então, se dividiram em dois grupos de onze. Como havia um vigésimo terceiro membro na turma, este foi escolhido para atuar de “referee”, ou árbitro. O infeliz encargo recaiu sobre Theodoro Joyce que, a exemplo dos irmãos Cross, também possuia algumas noções sobre as regras básicas do jogo. Equipes escolhidas, ainda pairava no ar algumas dúvidas: – “É preciso tirar a gravata?”, perguntavam uns, olhando para Dick Martins. – “Não. Basta afrouxar o laço”, respondia. – “Tenho que levantar a barra da calça?”, perguntavam outros, sem a menor noção do que estavam fazendo. – “Se você quiser levantar, levante, mas não é obrigatório”, emendava o “dono da bola”.
O fato é que, dos vinte e três “atletas” da pioneira partida futebolística em Santos, ninguém jogou de shorts. Muito pelo contrário, todos optaram em manterem-se elegantes. O grupo, assim, parecia estar mais preparado para um baile do que uma atividade esportiva. Seis disputaram a partida engravatados, dois deles com paletó completo (Gil de Sousa Rodrigues e Theodorico de Almeida). Eduardo Cunha Machado estava mais à vontade, mantendo apenas suspensórios sobre uma fina camisa branca. Chapéus, então, eram quase todos a utilizar.
Preferências vestimentais à parte, o que valia, mesmo, aos bravos rapazes, era desfrutar o momento histórico. Ao longo da partida, que acabou se mostrando relativamente curta (pouco mais de meia hora), um série de situações engraçadas foram registradas. Vez em quando ocorriam trombadas entre os inexperientes “players” que, confusos sobre suas posições no campo, chocavam-se nas disputas pela bola. Esta, a bem da verdade, era mais oval do que redonda. E a condição disforme do principal objeto da partida resultou em lances que certamente seriam escolhidos para figurar na galeria do “Inacreditável Futebol Clube”. Diversas vezes, quando chutavam para a direita, a esfera de couro rumava para o lado oposto, arrancando gargalhadas gerais.
O clima descontraíso da partida revelou que, o que valia mesmo aos jovens santistas era a diversão e o prazer por experimentar a novidade. Assim, enquanto corriam e se divertiam, os rapazes, certamente, sentiam-se agradecidos por haverem comparecido algumas semanas antes no “Variedades”, onde tiveram a oportunidade de escrever o primeiro capítulo de uma bela e longa história.
Fotografia raríssima, do primeiro grupo de rapazes que disputou uma partida de futebol em Santos. Da esquerda, para a direita, em pé: Henrique Porchat de Assis, Luiz Nery, Roberto Muller, Francisco Salgado César, Raul Schimidt, Gil de Souza Rodrigues, Victor Cross, Miguel Baraúnas, Theodoro Joyce, Walter Grimsditch, Theodureto Souto, Theodorico de Almeida, Jonas da Costa Soares e Eduardo Cunha Machado. sentados, na mesma ordem: André Peixoto Miller, Leão Peixoto de Mello, Lucas Fortunato, Francisco Martins Filho, A. Werneck, Haroldo Cross, Agenor da Cunha Machado, João Mourão e Quintino Ratto. À frente dos “jogadores”, pode-se ver as duas primeiras bolas de futebol que apareceram em Santos. Pode-se notar que elas, de fato, não eram bem redondas!
Vaquinha para comprar a bola
O simpático Teatro de Variedades, situado na esquina da Rua XV de Novembro com a Praça dos Andradas, era o principal reduto da jovem boemia santista, onde se reuniam diversos praticantes do ciclismo, caso de Henrique Porchat e seus amigos. O esporte das duas rodas e o remo (náutico) rivalizavam-se como as principais atividades esportivas da cidade de Santos na época. Um certa noite, na primeira metade de 1902, Dick Martins chamou os companheiros para compartilhar uma ideia: introduzir o futebol em Santos. O esporte bretão já vinha sendo praticado em vários locais de São Paulo e na capital federal (o Rio de Janeiro). Aquilo, de certa forma, incomodava Porchat. – “Meus amigos, esse esporte, em S. Paulo, no Rio, em Sorocaba, em Campinas, já começa a ficar de cabelos brancos, e nós, por aqui, como se vivêssemos nos cafundós do Saara, não sabemos, sequer, como é a cor de uma bola de futebol”.
Todos apoiaram a ideia e fizeram uma “vaquinha” para que Henrique Porchat adquirisse duas bolas. Ele gastou, na época, trinta mil reis na compra (o equivalente hoje a R$ 600,00).
Primeiro “contra” pra valer
Os rapazes gostaram tanto do tal “football”, que continuaram se encontrando nas areias da praia da Barra para treinar. Em dezembro, Dick Martins convidou um grupo de jogadores da capital paulista, um combinado de atletas do Mackenzie, Paulistano e Germânia, para um “contra”. Os visitantes davam como certa a vitória sobre os novatos praianos. – “Surra de quanto, santistas?”, chegaram dizer. A resposta veio no campo. O time de Henrique Porchat venceu os “experiêntes” da capital por 3 x 1. Era a primeira vitória de uma cidade que se acostumou ao esporte, ao ponto de se tornar uma referência mundial, algumas décadas mais tarde, algo que nenhum dos pioneiros poderia jamais imaginar.