Pelé: O “César Negro” – Matéria da Revista Manchete revela o clube e o atleta fenômenos do futebol mundial

Em 1961, o Santos Futebol Clube já encantava o mundo do futebol. A equipe praiana era a sensação dos campeonatos paulista e brasileiro, e forte candidato aos dois títulos (que de fato, ganhou, ambos, no final do ano). Sua maior estrela era, sem sombra de dúvida, o jovem Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, de 20 anos de idade, que já trazia em sua bagagem um título mundial de seleções, conquistado em 1958, na Copa da Suécia. Mas o esquadrão “peixeiro” não se restringia apenas ao “Rei”, mas a sua insuperável linha de ataque. Diante disso, os jogos do Santos eram, de fato, verdadeiros espetáculos. 

Os europeus, sabedores disso, passaram a chamar o Santos para jogos-exibições e torneios tradicionais, na condição de convidado. Em uma dessas partidas, contra a fortíssima Internazionale de Milão, na final do “Torneio Itália”, o peixe foi tão majestoso, que mereceu destaque na imprensa internacional e brasileira, como na famosa revista Manchete, do Rio de Janeiro. Os cariocas reproduziram o apelido que a imprensa italiana dera a Pelé por conta daquele jogo de 24 de junho de 1961. E, agora, o Memória Santista, reproduz o artigo, escrito por Ney Bianchi.

Texto de Ney Bianchi (Revista Manchete – edição 481, de 8 de julho de 1961)

Quando Pelé, sábado último, marcou o quarto gol do Santos contra o Internazionale de Milão, no Estádio de San Siro, 110 mil pessoas, de pé, aplaudiram freneticamente. Foi um lance diabólico. Ele recolheu a bola no seu campo, driblou dois aniversários e entregou-a a Coutinho. Em seguida, disparou contra a área inimiga e quando a bola voltou aos seus pés, parou-a com a ponta da chuteira direita.  Num arisco passe de mágica passou por quatro defensores milaneses, encobriu o arqueiro e empurrou a pelota mansamente para dentro da meta. Os torcedores da Internazionale substituíram a melancolia da derrota de 4×1 pelo fanatismo da adoração de um ídolo. Pelé surgiu para os italianos como um autêntico “Césare Negro”, como chegou a escrever um dos jornais de Milão, comandando um exército, invencível: o Santos Futebol Clube.

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Até 1950, a equipe italiana do clube Torino era considerada a melhor do mundo, pois formava a base da famosa “Squadra Azurra”. Logo após a catástrofe aérea de Superga, quando todos os seus jogadores pereceram, os jornais foram unânimes: “Jamais se poderá formar outro conjunto igual”. Começou, então, o Império do Real Madrid com a contratação de Di Stefano e Puskas. Em 1958, o Brasil venceu a copa mundial, mas ninguém queria admitir que ele também possui o melhor quadro do mundo. Esta impressão perdurou até o advento do fenômeno Santos-Pelé.

Nas últimas duas semanas, excursionando pela Europa, o quadro dirigido pelo técnico Lula venceu Torneio de Paris e a Taça Itália-61, considerados entre os mais importantes certames de futebol do Velho Mundo. As exibições sensacionais dos brasileiros cativaram definitivamente as mais exigentes plateias. Pelé, por seu turno, liquidou de vez as pequenas dúvidas que pudessem existir quanto a sua superioridade sobre Puskas ou Di Stefano. Ele criou para o jornalistas um sério problema: arranjar novos adjetivos para descrever suas façanhas. Marcou tentos incríveis e impossíveis. E quando escreviam que “jamais poderá haver outro gol igual àquele”, Pelé assinalava um tento mais espetacular ainda. Ele confundiu de tal forma os observadores, que eles hoje não sabem se devem chamá-lo de anjo ou demônio. No momento, nenhum crítico ousa afirmar que “Pelé já realizou a sua maior façanha”.

Mas a Europa não entregou tão facilmente o seu orgulho. Arranjou uma forma de se render honrosamente ante o poderio dos Santos-Pelé. A cada vitória do invencível esquadrão brasileiro ganhou força afirmação de que “enfim os diabólicos sul-americanos conseguiram unir ao seu incomparável estilo pessoal os sistemas táticos do Velho Continente”. Mas, na verdade, o Santos nunca foi tão verde-amarelo. A sua força repousa, justamente, nos esquemas que levaram o Brasil à conquista da Copa do Mundo: o não cerceamento das habilidades próprias de cada jogador e a valorização dos recursos de improvisação do craque brasileiro, aliados ao jogo rápido e de primeira. Um exemplo típico dessa estratégica foram os dois gols fulminantes conquistados contra URSS (União Soviética).

Pelé jogou uma enormidade. Os jornais de Milão, no dia seguinte estamparam: “Pelé é un vero assombro del calcio!” (Pelé é um verdadeiro assombro do futebol)

Após a sua vitória em Milão, o Santos reconhecido, de fato e de direito, como melhor conjunto do mundo. O clube Juventus, da cidade de Torino, chegou a oferecer um milhão de dólares (cerca de Cr$ 260 milhões de cruzeiros – equivalente em 2023 a R$ 130 milhões) pelo passe de Pelé, quebrando um tradicional acordo entre os clubes italianos que os proíbe de contratar jogadores negros.

A resposta do presidente dos Santos, deputado Athiê Jorge Cury, foi categórica: “Não vendo nem por 1,2 ou 3 milhões. Pelé não tem preço”. E ele justifica a sua sucinta documentação dizendo que o craque não é somente o orgulho de seu clube, mas o ídolo de 70 milhões de brasileiros.

O sucesso do Santos FC mereceu chamada de capa na revista Machete.

Estas palavras, porém, não deram para desanimar os abastados donos do futebol europeu que, com livros de cheques nas mãos, estão dispostos a contratar outros astros do Santos. Estes, por incrível que pareça, nada, ou quase nada, custaram, ao clube. Foram descobertos nas areias das praias de Santos jogo em Vila Belmiro desde o tempo de juvenis, constituindo um tesouro avaliado em mais de 5 milhões de dólares.

No começo da partida entre os Santos e o Internazionale, apesar da imediata superioridade dos brasileiros, a plateia italiana alimentava esperanças de que o time local obtivesse a vitória. O Santos, porém, arrasou cientificamente o inimigo, executando planos traçados com rigor de uma operação militar. Por isto, além de Pelé, Pepe, Dorval, Coutinho e Zito, os europeus descobriram um outro gênio brasileiro do futebol: o técnico Luiz Alonso, Lula. Ele é o maestro de um extraordinário conjunto de virtuoses.