Santos é o berço da tatuagem no Brasil

O ateliê/loja de Lucky na rua João Otávio, 2. Venda de souvenires e desenhos na pele.

Santos, julho de 1960. Dois novatos marinheiros norte-americanos percorriam, no meio da tarde e à pé, a agitada zona da “Boca” portuária santista, atraídos pela entusiasmada propaganda feita à bordo pelos colegas mais experientes e conhecedores dos mistérios e diversões que permeavam a extravagante  região boêmia do maior porto brasileiro. De repente, eles se viram atraídos pela vitrine de uma pequena loja situada no quadrilátero final do bairro do Paquetá, na rua João Otávio, nº 2, quase na esquina da rua General Câmara. Ao se aproximarem do estabelecimento, reconheceram a lingua natal estampada numa pequena placa de madeira, disposta entre várias quinquilharias comercializadas como souvenirs. Nela estava grafado um anúncio provocativo: “It’s not a sailor if he hasn’t a tattoo” (Não és um marinheiro se não tiveres uma tatuagem). Desafiados pela propaganda, os dois jovens se entreolharam e decidiram, juntos, que estavam prontos para se tornarem “adultos” no universo do mar.

Ao adentrarem no pequeno espaço comercial, foram atendidos por um sujeito que claramente não parecia ser brasileiro. Ele era um homem de grande estatura, cabelos claros e olhos azuis profundos, bem longe do estereótipo latino. A certeza da origem estrangeira se evidenciou quando ele os saudou num inglês carregado do sotaque característico aos homens do norte europeu. Ostentando um sorriso malicioso, o atendente pegou uma pasta com vários desenhos e apresentou-a aos curiosos marinheiros. A imagem de âncoras era predominante na inusitada galeria oferecida pelo produtor de arte sobre a pele, o que chamavam de “tattoagem”. Depois de escolherem as marcas que os carregaria para sempre, os dois jovens iniciaram o processo de transformação, de grumetes  (marinheiros novatos) para lobos-do-mar.

Lucky Tattoo

Pioneiro na América do Sul

O homenzarrão que provocava os marinheiros em trânsito pelo porto de Santos era o dinamarquês Knud Harald Lykke Gregersen. Ele havia chegado um ano antes, desembarcando no cais em 20 de julho de 1959. A proposta era chegar, fazer algum dinheiro e zarpar para outras aventuras. Mas “Lucky Tattoo”, já contando com 31 anos de idade, se apaixonou pela agitada cidade portuária brasileira e resolveu fincar sua base em definitivo. Sem ele saber, embora desconfiasse, Gregersen era o primeiro tatuador em terras brasileiras e até sulamericanas. 

Em sua bagagem, Knud Gregersen trazia uma história de vida repleta de aventuras pelo mundo e, principalmente, dos ensinamentos técnicos do pai, que fora um dos mais conhecidos tatuadores da Dinamarca nos anos 1930 e 1940, Tattoo Jack. Quando decidiu fincar raízes no Brasil, Knud adotou o codinome Lucky (Sortudo, afortunado), com a esperança de ser bem-sucedido na nova terra.

Uma arte desconhecida 

Os brasileiros não conheciam a arte da tatuagem e, muito menos, os apetrechos necessários para que ela fosse possível. Isso causou certa apreensão de início. Na delegacia de imigração, por exemplo, ele teve que explicar aos agentes o que fazia com a estranha máquina de pintura com uma agulha na ponta. “É para gravar a pele, tatuar imagens no corpo”, dissera o dinamarquês aos curiosos funcionários do governo. Apesar da incredulidade demonstrada pelos agentes, o dinamarquês teve sorte de eles não se importarem com o equipamento e o liberarem para trabalhar no país. Era o “Lucky” dando as caras!

Gregersen logo alugaria a pequena loja na Rua João Octávio, nº 2, perto da área mais agitada das Bocas, onde ganhou fama e passou a tatuar os estrangeiros de passagem pelo porto santista. Ele sabia que sua clientela mais potencial era mesmo o homem do mar, assim como fora historicamente em sua terra, a Dinamarca, lar ancestral dos vikings, povo que carregava culturalmente o costume de desenhar na pele. “It’s not a sailor if he hasn’t a tattoo”. Este apelo logo ganhou fama na cidade, ainda mais lastreado pelo personagem de desenho animado Popeye (criado por Elzie Crisler Segar em 17 de janeiro de 1929), que ratificava a máxima de que “marinheiro de verdade tinha de ostentar uma bela tatuagem!”

Lucky foi ganhando aos poucos fama nacional e internacional. Ele fazia seu trabalho nos fundos da loja, reservando a parte da frente para a venda de souvenirs, muitos deles coletados nos 42 países que Gregersen percorreu antes de se fixar no Brasil. Além dos marinheiros, o local passou a ser frequentados por caminhoneiros, que iam até o estúdio para marcar o corpo com imagens de Nossa Senhora Aparecida, Jesus Cristo e cruzes para proteção. Nos anos 1960, os jornais e revistas de circulação nacional o consideravam o primeiro e único tatuador da América do Sul.

Petit, o Menino do Rio, eternizado na música de Caetano Veloso, e cantada por Baby Consuelo (na foto). No braço, o dragão desenhado por Lucky Tattoo.

Menino do Rio

Mas o auge da fama de Lucky aconteceu mesmo nos anos 1970, quando passou a tatuar outra espécie de homens do mar: os surfistas. Um deles, o carioca José Artur Machado, o famoso Petit, acabaria se tornando o símbolo de uma geração de jovens bronzeados de Ipanema, imortalizado por Caetano Veloso em 1979 na música “Menino do Rio”, sucesso nacional na voz de Baby Consuelo. A estrofe inicial indicaria claramente o estilo de vida daquela geração: Menino do Rio/Calor que provoca arrepio/ Dragão tatuado no braço/ Calção corpo aberto no espaço. O “santista” Lucky Tattoo era o responsável pelo desenho de dragão em Petit.

Knud Gregersen permaneceu por vinte anos na cidade santista e era um dos protegidos da Boca. Um dia, um marginal desavisado resolveu assaltar seu ateliê. Foi capturado pelos “donos” do pedaço e castigado, Mas Lucky, desgostoso com o ocorrido, decidiu fazer suas malas e deixar Santos, para nunca mais voltar. Primeiro rumou para Itanhaém e depois para a cidade de Arraial do Cabo, no Rio de Janeiro, onde faleceu, aos 55 anos de idade, no dia 17 de dezembro de 1983.

A trajetória de Knud Harald Lykke Gregersen, o nosso querido Lucky Tattoo, foi tão marcante em seu segmento, que o dia 20 de julho (a data em que ele chegou ao Porto de Santos) acabou sendo a escolhida para a celebração do Dia Nacional do Tatuador.

Mais um pioneirismo na conta da nossa Santos, tão rica de histórias.

Curiosidade

A palavra “Tattoo” vem de tatau, “fazer uma marca ou desenho”, do taitiano. A palavra foi introduzida em 1769 na língua inglesa pelo navegador britânico Capitão James Cook (1728 – 1779).

Desenhos do Lucky, de 1981
Desenhos do Lucky, de 1981
Lucky Tatoo em seu estúdio.
Lucky Tatoo em seu estúdio.
Detalhe de máquina original de Jens Gregersen, pai de Knud Harald Lykke Gregersen, o Lucky Tattoo — foto: Leandro Moraes/UOL
Detalhe de máquina original de Jens Gregersen, pai de Knud Harald Lykke Gregersen, o Lucky Tattoo — foto: Leandro Moraes/UOL

 

 

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