Década de 1940. O mundo vivia o horror da guerra em escala global. O Brasil, distante geograficamente do epicentro do conflito, mas não totalmente à salvo das consequências da insanidade de Adolf Hitler e Benito Mussolini, ansiava por uma solução que colocasse um ponto final naquele pesadelo, que influia na própria sociedade brasileira, construída, entre outras, também por mãos alemãs, italianas e japonesas (Em 1941, o Japão se aliava à Hitler e Mussolini, formando a Potência do Eixo).
Neste cenário de instabilidade, que afetou relações sociais, comerciais e industriais, e a própria economia do país, Santos e seu porto estratégico viveram dias, meses, anos de insegurança, temendo retaliações germânicas a partir da declaração de guerra assinada por Getúlio Vargas em 22 de agosto de 1942. O receio dos santistas era ver a cidade bombardeado por submarinos alemães.
Até o início do conflito, Santos demonstrava que vinha se recuperando razoavelmente bem das sequelas causadas pela quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, testemunhando o surgimento de importantes equipamentos e espaços públicos, como o edifício da Alfândega (1934), os jardins da orla da praia (1935), o Palácio Saturnino de Brito (1937) e o Paço Municipal (1939).
Vida segue em frente
Apesar da guerra, mas contribuindo muito para se colocar um fim no conflito (Santos promoveu várias ações de coleta de materiais para os aliados, como metais e borracha, além de fornecer voluntários para a Força Expedicionária Brasileira – FAB), os santistas precisavam seguir em frente, preparando a cidade para o que viria a ser uma grande alternativa de fonte econômica ao decadente comércio do café: o turismo (é importante pontuar que, em razão do ambiente de instabilidade na Europa, Estados Unidos, Ásia e África, a atividade turística dos brasileiros mudou radicalmente. A classe mais abastada passou a frequentar os destinos locais, assim com a classe média que, com a popularização do automóvel, tornou-se um público a ser considerado pelos municípios balneários, como Santos).
Assim, a cidade passou a planejar o avanço urbanístico para os espaços fronteiriços à orla, dotando as áreas turísticas de novos equipamentos e componentes visuais atrativos, ornando ruas, avenidas e jardins públicos. Neste contexto nasceria o elemento que viria a se tornar um dos símbolos da cidade.
A obra da Saldanha da Gama
No planejamento de melhorias para a região praiana, uma das obras apontadas como das mais importantes foi a construção da avenida Almirante Saldanha da Gama (cujas obras se iniciaram em 1941), que atribuiria uma cara nova ao bairro da Ponta da Praia, conhecido por abrigar os grandes clubes de regatas da cidade, o ferry-boat para o Guarujá e algumas das últimas chácaras da ilha.
A via, de pouco mais de 1.600 metros (desde a Rua Carlos de Campos até o Ferry), abria um campo de valorização local, permitindo a programação urbanística de todo o bairro.
Para implementar a avenida, a Prefeitura teve de promover o aterramento de grande faixa de areia, incluindo a construção de muro de arrimo e barreira de contenção (com pedras) para deter o avanço da maré. Tudo se encaixou perfeitamente, mas ainda faltava algo, como uma espécie de “cereja do bolo”. Foi aí que se pensou em produzir um elemento decorativo, que também fosse protetivo, para “abraçar” o calçamento ao longo da via. Então, nasceu o projeto que se tornaria conhecido popularmente nos dias de hoje como “muretas dos canais”.
Balaustrada* art déco
Em 1941, logo após o início das obras de criação da avenida, o então engenheiro chefe da Diretoria de Obras da Prefeitura de Santos, Carlos Lang, apresentou ao prefeito o primeiro desenho do que se chamou de “Balaustrada da Avenida Almirante Saldanha da Gama”. O elemento, além de decorativo, tinha como função proteger os traseuntes em suas passagens pelo calçamento de pedestres. O projeto contava com algumas entradas, rampas que davam acesso ao mar, especialmente construídas para uso das agremiações náuticas e polícia marítima. Após aprovada a proposta, que remetia à forte influência do “art déco”, somente em 14 de abril de 1943 é que Lang remeteu ao Departamento de Obras Públicas e Jardins o desenho esquemático para a construção das muretas, colunas e pórticos. Com o projeto, a Prefeitura abriu concorrência pública para a execução da obra, vencida pela empresa O. Ribeiro e Cia., ao preço de CR$ 379.024,00 (o que equivaleria hoje a cerca de R$ 3 milhões).
As obras de implantação da balaustrada da avenida Almirante Saldanha da Gama foram entregues em meados de 1945, “coincidentemente” juntas com outras importantes inaugurações, como a do Aquário Municipal e da nova Santa Casa de Misericórdia.
O visual simples e encantador da grande barreira de muretas da Ponta da Praia acabou, assim, com o passar do tempo, conquistando outros espaços na orla, em especial as ponteiras dos canais de Santos (daí a origem do apelido “muretas dos canais”).
O ano de 1945 também ficou marcado pelo fim da Segunda Guerra Mundial, aliviando a alma santista, que podia a partir dali, observar através dos círculos das muretas, não o inimigo com suas intensões hostis, mas novamente embarcações comerciais e de passageiros, todos revestidos com o branco da paz.
Arte déco – Movimento artístico internacional que começou na Europa em 1910, conheceu o seu apogeu nos anos 1920 e 1930. O Art déco afetou as artes decorativas, a arquitectura, o design de interiores e desenho industrial, assim como as artes visuais, a moda, a pintura, as artes gráficas e o cinema. No Brasil, o maior exemplo de arte deco é o Cristo Redentor, do Rio de Janeiro.
* Balaustrada (arq.) – Qualquer parapeito, corrimão ou grade de apoio ou proteção.