A primeira Rainha Negra do Carnaval de Santos

Terezinha Tadeu, ao lado do Rei Momo, Waldemar Esteves da Cunha e da Corte Mirim de 1967.

Terezinha Tadeu rompeu dezoito anos de reinados de rainhas de pele branca, abrindo alas para um processo mais plural e democrático na Corte Carnavalesca santista

Santos, 4 de dezembro de 1966 – Antônia Terezinha dos Santos, ou Terezinha Tadeu (nome artístico que adotara no teatro), andava a passos largos por entre a multidão que lotava o ginásio do Clube Internacional de Regatas, durante o I Simpósio do Samba, evento inédito que reunia em Santos carnavalescos de todos os cantos do país. Ela estava praticamente uma hora atrasada para o desfile do concurso “Miss Samba”, em que representava a Escola Império do Samba a convite seu presidente, Dráuzio da Cruz. A moça, de pouco mais de vinte anos de idade, não tinha praticamente nenhuma experiência naquele universo, jamais havia desfilado numa agremiação de Carnaval, e tampouco sabia sambar, mas chamara a atenção de Dráuzio em função da desenvoltura artística que apresentou em um papel que atuara na peça “A Falecida”, de Nelson Rodrigues, cujo elenco era formado por alunos do Teatro da Faculdade de Filosofia – TEFFI. O líder da Império do Samba, que assistira ao espetáculo teatral, sabia, no fundo de sua alma, que Terezinha tinha tudo para se tornar uma estrela do Carnaval, ou melhor ainda, uma Rainha, e fazer história.

Pelo atraso, a jovem acabou, de fato, perdendo pontos importantes e, consequentemente, o título de “Miss”, mas acabou convencida por Dráuzio a tentar outro posto, ainda maior e mais ousado, sobretudo por ser ela uma recém-chegada no mundo da folia: o de “Rainha do Carnaval de Santos”. Só que havia um componente a mais que tornava a tarefa dificílima. Desde 1949, quando Jarina Rezende, uma cantora do Cassino Atlântico ganhara o título, iniciando a história das rainhas da Corte Santista, nenhum das “soberanas” da festa momística apresentava um tom de pele escuro. E Terezinha, ainda que não fosse uma “negra retinta” (dentro da teoria do colorismo, bastante discutida nos dias de hoje, é um termo utilizado para definir os negros de pele bem escura) era, sem sombra de dúvida, uma legítima representante de uma parcela da sociedade que vivia à margem das oportunidades. A novata, assim, não só venceu, com 84 pontos, como deu um banho em suas duas concorrentes: Sonia Maria Roque (41 pontos) e Maria da Graça Silva (40 pontos). A festa da Império do Samba, então, foi geral e Dráuzio da Cruz, com as mãos no rosto, agradeceu aos céus por comprovar que estava absolutamente certo de seus instintos. O Carnaval santista, enfim, ensaiava os passos para um mundo mais democrático e plural, socialmente e racialmente.

Dráuzio da Cruz apostou que Terezinha seria uma Rainha histórica. Dito e feito! Festa na quadra da Império do Samba.

Não era apenas só mais um rostinho bonito

Mas Terezinha Tadeu não conquistara o posto tão somente para criar uma ruptura de tradições, como se fosse um “troféu de consolação”. A menina tímida, ainda estudante ginasial, no Ateneu Santista, trazia consigo uma trajetória artística muito intensa, apesar da pouca idade. Sua vida nas artes havia se iniciado em 1956, quando, com onze anos, começou a cantar no Coral Vicentino, sob regência do maestro Jesus de Azevedo Marques. Três anos depois, ingressava no Centro Português de Santos, onde passou a praticar teatro, sob direção de Antônio Faraco, e atuando em peças como “Uma Flauta para um Negro”, “Dona Xepa”, Os Pequenos Burgueses”, “Flores de Sombra” e “Barco sem Pescador”. Em 1965, esteve no conjunto musical “Os Hifens”, sob direção de Lizete Negreiros e no ano seguinte decidiu fazer o curso de interpretação de Eugênio Kusnet, na capital, além do Curso Básico Intensivo de Teatro promovido pela Faculdade de Filosofia de Santos, o que motivou seu ingresso no elenco de “A Falecida”, obra de Nelson Rodrigues. Foi sua brilhante atuação nesta peça que chamou a atenção de Dráuzio da Cruz e do mundo do Carnaval. E justo, até porque Terezinha não era apenas mais um rostinho bonito a desfilar nos salões e ruas da cidade.

As feições delicadas de Terezinha Tadeu encantaram os santistas, que exaltaram seu “reinado”. Mas ela era muito mais do que um rosto bonito: era uma estudiosa das artes cênicas e plásticas.

Seu reinado, ao lado do eterno Waldemar Esteves da Cunha, foi marcante. A crônica carnavalesca da época se curvou à incrível capacidade da nova Rainha atrair olhares admirados. Antônio Nunes, o Lord Lobisomen, diria: “A Rainha do Carnaval de 1967 é a moreníssima Terezinha Tadeu, que todos tem admirado e aplaudido em seus aparecimentos em público ao lado de Waldemar Esteves da Cunha, o nosso veteraníssimo Rei Momo. Terezinha pertence ao grupo teatral do TEFFI (Teatro Escola da Faculdade de Filosofia), é solteirinha da “silva”, torce pelo Santos e admira o rei Pelé. Foi a escolha mais acertada possível no parecer deste intragável e impertinente, Lord Lobisomem”. A atriz teatral, de fato, foi impecável em seu maior papel até então, preenchendo magistralmente os salões de bailes dos clubes. Ela e Waldemar foram ainda “padrinhos” da segunda Corte Mirim de Santos, formada por João Carlos de Sales Gomes (Rei Momo Mirim) e Zelita de Oliveira (Rainha Mirim).

Um brilhante ano de reinado

Durante todo o ano de 1967, Terezinha colheu os louros de sua conquista, viajando o Brasil para representar o Carnaval santista. Em maio, a atriz resolveu disputar o concurso “Bonequinha do Café”, dedicado apenas para mulheres da raça negra, e ficou em segundo lugar. Em junho, passou a integrar o elenco da peça “Pedro Mico”, vinculado ao Grupo Teatral Perspectiva de Santos, ao lado de Gilberto Hélio Molinari, Lizete Toledo de Negreiros, Jorge Elias, Maurício Chagas e outros. O roteiro apresentava um paralelo com a história de Zumbi dos Palmares. Terezinha fez o papel de Melize, e chegou a ganhar, com ele, o prêmio de “melhor atriz coadjuvante” no 5º Festival Estadual de Teatro Amador. Antes de terminar o ano, ela ainda teve tempo de participar do TIC (Teatro Íntimo de Comédia) para ensaiar para uma peça infantil intitulada “A Princesa e o Sapo”.

Terezinha no elenco da peça Infantil “Dona Patinha vai ser Miss”. A atriz era bastante eclética em suas performances nos palcos.

Uma vida dedicada à arte

Depois de passar o cetro “real” para sua substituta, no Carnaval 1968, Regina Helena Santana, outra mulata, como ela, Terezinha voltou-se totalmente ao mundo dos palcos. Integrou o elenco de várias peças até o final dos anos 1970, principalmente participando de espetáculos que mesclavam música e poesia. Também mesclou o mundo cênico com o das artes plásticas, participando de diversas mostras promovidas pelo Tacap (Teatro Amador com as Artes Plásticas), ao lado de artistas como Luis Monforte, Anna Mantovani, Alfredo Paulo Neto, Walderi de Almeida, Nelsinha Franco e Gilson Melo Barros. Empolgada com a pintura, ingressou na Faculdade de Artes Plásticas de Santos e passou a frequentar o ateliê de Beatriz Rota-Rossi. Na galeria do Sesc, Terezinha apresentou uma mostra com objetos feitos com o lixo de construções: arames, peneiras e outros objetos que compunham seu objetart.

Depois de algum tempo reclusa, voltou à cena nos anos 1990, participando de um projeto teatral na Cadeia Velha, dentro das Oficinas Pagú, junto com Heraldo Vicente, Luiz Carlos Gomes e Urivani Rodrigues de Carvalho, sob o comando de Tanah Corrêa. O grupo criou na cadeia velha uma atmosfera acolhedora, com cafezinho, chá e biscoitos, transformando as reuniões em ponto de encontro da classe teatral e amantes do teatro. E até o fim da vida dedicou-se à arte, vindo a falecer em 2001, muito jovem ainda, com pouco mais de 60 anos de idade. Sua luz se apagou, mas seu brilho permanece eterno no panteão das grandes rainhas do Carnaval Santista, a nossa primeira “Rainha Negra”.

Terezinha Tadeu ficou em segundo lugar no concurso “Bonequinha do Café”, de 1967.