Santos, domingo, 21 de julho de 1946. Era quase final de tarde e as cercanias da praia do Boqueirão, o dito “Miramar”, estavam repletas de crianças, alunos de diversas escolas da cidade. Afinal, era um dia de festa, um dia para homenagear um dos grandes nomes da história santense, o “Poeta do Mar”, o grande Vicente Augusto de Carvalho. O belo monumento erigido em sua memória, nos jardins da praia que, por causa de sua luta existiam (veja artigo sobre isso), seria finalmente inaugurado, diante da presença do povo santista, que abraçava a prole do saudoso poeta. Lá estavam as filhas Ermelinda Vicente de Carvalho, Vicentina Mesquita de Carvalho, Mercedes de Carvalho Moreli, Maria Adelaide de Carvalho Moreli, Dadinha Vicente de Carvalho, Conceição Vicente de Carvalho, Maria Augusta Vicente de Carvalho e os filhos Paulo Mesquita de Carvalho, Francisco Benedito de Carvalho e Arnaldo Vicente de Carvalho, além de duas irmãs e vários netos do homenageado.
O evento contava com a presença do então interventor do Estado de São Paulo (governador nomeado pelo presidente Getúlio Vargas), o embaixador José Carlos de Macedo Soares; do prefeito de Santos, Edgard Boaventura; do poeta Guilherme de Almeida, representando a Academia Brasileira de Letras; entre outros representantes da sociedade e demais autoridades, civis e militares.
O ponto alto da festa foi quando Dona Ermelinda, a escolhida entre os filhos do homenageado, puxou a corda que descerrou o manto que cobria o belo monumento produzido por Caetano Fracarolli. Ao som dos vivas gritados pelas crianças, o autor da obra olhava para sua criação, rememorando o início de uma verdadeira aventura, quatro anos antes.
O início de tudo
Vicente de Carvalho já tinha falecido havia muitos anos, em abril de 1924. A cidade se transformara bastante desde então. Porém, todos ainda se recordavam da alma inspirada do santista poeta, amante do mar, reconhecido também como um grande homem público, sensível ao desenvolvimento de sua terra.
Santos completara 100 anos de idade em 1939, e ganhava ares aristocráticos por conta de seu novo lar, o imponente Palácio José Bonifácio. Para os lados da orla santense, uma identidade moderna, com belos palacetes à beira mar e jardins floridos, se construía a olhos vistos. Era impossível desassociar tal avanço sem lembrar do gesto de Vicente de Carvalho que, em 1921, escrevia uma carta aberta ao então presidente da república, Epitácio Pessoa, seu amigo, pedindo-lhe que não admitisse a exploração da faixa de orla pela especulação imobiliária. O presidente, então, sensível ao texto impressionável do companheiro, ordenou que espaço fosse incorporado ao patrimônio de todos os santistas.
Vicente de Carvalho foi exaltado pelo movimento político e cidadão. Mas o orgulho maior dos conterrâneos era por sua habilidade indescritível como poeta, um dos mais talentosos da língua portuguesa, um membro respeitadíssimo da Academia Brasileira de Letras. Assim, diante de tantos fatos de vulto, a cidade tinha esse dívida, de promover uma homenagem à altura do vate santista.
No início de 1942, o então prefeito de Santos, Antônio Gomide Ribeiro dos Santos, decidiu colocar a ideia em prática, convocando a Comissão Municipal de Cultura para que planejasse algo no sentido de perpetuar a memória de Carvalho na urbe santista. Foi quando tiveram a ideia de erigir um monumento de grande porte justamente no local onde Vicente de Carvalho exibia sua maior essência: diante do mar e nos jardins da orla santista.
Dois mestres e um novato
Gomide delegou a missão de contratar os escultores ao Diretor de Obras do Município, o arquiteto Zenon Lotuffo. Três profissionais foram, então, convidados a encaminharem propostas: os renomados escultores ítalo-brasileiros Victor Brecheret (48 anos) e Galileo Emendabili (44 anos) e o novato Caetano Fraccarolli, de apenas 29 anos, italiano radicado em Santos e membro da família proprietária do Parque Balneário Hotel. Tanto Brecheret quanto Emendabili já atuavam em obras públicas de relevância desde os anos 1920. Brecheret já havia planejado e esculpido em maquete a obra que marcaria sua vida, o Monumento às Bandeiras (hoje um cartão postal da cidade de São Paulo). Emendabili, por sua vez, era um escultor largamente premiado (ele viria a ser o autor do famoso obelisco do Ibirapuera, o Monumento Mausoléu ao Soldado Constitucionalista). Fraccarolli, assim, era o azarão do páreo, mas acabou vencendo a concorrência.
Brecheret enviou sua proposta em carta assinada no dia 12 de maio de 1942 (parte do processo 7178/1942). Nela, o escultor exalta as qualidades do poeta Vicente de Carvalho e propôs uma “estátua em bronze, com um total de seis metros incluída a base, na praia, descortinando a baía, de pé, no alto de uma rocha, cabelo e manto ao vento, chapéu na mão, na atitude solene e nobre de quem se perde em meditação contemplando o horizonte. A brisa do mar, que ele cantou, determina a graça escultora do planejamento”. Brecheret informou que seriam necessários sete meses de trabalho para produzir a obra, com custo de 90:000 (noventa contos de reis) (cerca de R$ 1,2 milhão nos dias de hoje).
Emendabili, por sua vez, não encaminhou proposta. Ele enviou carta declinando do convite por estar sem tempo para atender a demanda. “São Paulo, 11 de maio de 1942 – Prezado Sr. Lotuffo. Saudações. Recebi vossa prezada carta com a qual, em nome do excelentíssimo senhor prefeito, muito amavelmente nos convidou para concorrer à construção de um monumento ao grande poeta Vicente de Carvalho a ser erigido em Santos. Lamento sinceramente não poder tomar parte do brilhante certame por motivo de compromissos assumidos para execução de trabalhos urgentes. Agradecendo Vossa Senhoria pedimos a fineza de transmitir ao excelentíssimo senhor prefeito os meus agradecimentos pela atenção com a qual quis distinguir-me e o meu desagrado por não poder ter a honra de submeter o meu trabalho à sua apreciação. Galileo Emendabili”
Fraccarolli, por sua vez, em carta de 25 de maio de 1942, encaminhou duas maquetes com propostas distintas. A primeira, feita em barro, mostrava o poeta encostado em uma rocha, batida pelas ondas. Justificou: “Vicente de Carvalho foi o cantor do mar por excelência. Portanto, o artista que desejasse perpetuar sua figura na pedra ou no bronze, forçosamente, no mar, teria que ir procurar inspiração. Assim, achei que o grande poeta estaria no seu elemento apoiado sobre um rochedo batido pelas ondas. Na sua atitude cismadora, retrato Vicente de Carvalho absorto na contemplação do mar, o ouvido atento ao clamor das ondas que para ele eram vozes amigas que sua alma de poeta cristalizava em versos. Essa concepção tem a vantagem de evitar a indumentária convencional da época, que por ser fora de moda, pode prejudicar o efeito estético do conjunto. Meu trabalho apresenta-o no traje que habitualmente usava nas suas excursões e é adequado a quem tanto amou a vida simples e o contato com a natureza.
Na segunda proposta ele justifica: “O livro preso nas suas mãos, além de apresentá-lo como intelectual que era, tem ligação direta com a sua atitude cismadora, pois as suas obras são os frutos da sua inspiração, perpetuadas em páginas belíssimas que hoje nos deleitam. Em torno do rochedo, nas suas partes lisas, estão gravados trechos de seus versos, conforme previa escolha.” Ao final, o escultor fala sobre as questões técnicas da obra, indicando que o monumento teria 4,20 metros de altura, ao custo total de R$ 100:000 (Cem contos de reis) (cerca de R$ 1.250 milhão nos dias de hoje).
A avaliação da Comissão de Cultura
Recebida as propostas e as maquetes de Brecheret e Fraccarolli, os materiais foram encaminhados para a avaliação final da Comissão Municipal de Cultura, cujo presidente era o crítico literário Álvaro Augusto Lopes. No despacho de 5 de junho de 1942, ela reputa que a proposta de Caetano Fraccarolli “é a mais interessante e a que melhor coaduna, pela delicadeza de concepção, à individualidade do poeta que se pretende homenagear”. Quanto ao preço, a Comissão achou razoável a do “santista”, porém, em se tratando de obra “cara”, sugeriu que ampliasse o convite a outros artistas reconhecidos nacionalmente, como Alfredo Oliani, Arlindo Castellani, Humberto Cozzo, João Batista Ferri (o mesmo que fez as estátuas do Paço Municipal), Julio Guerra, Lelio Coluccini, Otto Felner, Pedro Chiarotto e Ricardo Cipicchia.
O prefeito, no entanto, não querendo alongar e complicar a decisão, convidando mais artistas para encaminharem projetos, decidiu mandar entrar em entendimentos com Fraccaroli para que o artista concluísse o orçamento final, solicitando que a estátua fosse feita em bronze. A única exigência do escultor era que a Prefeitura providenciasse a sapata do monumento, o que reduziria, para o artista, o custo da obra.
Em setembro, o escultor encaminha os dados para a formalização do contrato. O monumento teria 4,20 metros de altura, sendo 3,20 da estátua e 1,0 metro da base (1,0 metro na parte anterior e 3,20 metros na face posterior, como se verificava na maquete). A figura do poeta seria executada em bronze puro, patinado e inoxidável. A base seria feita em granito cinza, sendo as ondas esculpidas com picola fina e o rochedo com picola grossa. Nas faces do rochedo estariam gravados versos do poeta e outros dizeres que fosse indicado ao artista. A parte dos alicerces estaria a cargo da Divisão de Obras da Prefeitura e o preço final fechado em 100:000 (Cem contos de Réis).
Problemas na aprovação fiscal e legal
Aprovado pelo prefeito, a administração tinha que se virar para obter os recursos para os pagamentos iniciais da obra. Não havia previsão orçamentária para tal contratação, sendo necessário abertura de crédito especial. Esse foi o despacho exarado em 24 de outubro de 1942 pelo auditor da fazenda municipal, Accacio de Paula Leite Sampaio.
O problema era que, de acordo com o auditor, havia um Decreto Lei Federal que impedia a abertura de crédito especial sem autorização presidencial antes do segundo semestre, somado ao fato de que depois de 14 de outubro nenhum tipo de movimentação financeira poderia ser feito no município de Santos (Circular 722, de 24 de setembro de 1941).
Outra questão era que havia um Decreto Lei Presidencial, 1.202, de 8 de abril de 1939, que impedia a construção de monumentos sem autorização expressa do presidente da República (Artigo 33 – É vedado ao Estado e ao Município, Item 10 – Erguer monumento ou realizar qualquer obra que importe modificação de paisagens ou locais particularmente dotados pela natureza, e assim declarados, em qualquer tempo, pelo Governo Federal, sem autorização expressa do Presidente da República;).
Diante da situação, a procuradoria do município, preocupada em “não magoar susceptibilidades” sugeriu que se obtesse a “licença presidencial” para a questão.
O prefeito acatou a sugestão e encaminhou ofício ao diretor geral do Departamento das Municipalidades do Governo do Estado de São Paulo, solicitando a abertura de crédito suplementar a autorização para a ereção do monumento na praia. O pedido foi aprovado pela Resolução 2988, em 29 de dezembro.
Estátuas alegóricas
Enquanto a parte legal e fiscal era resolvida na esfera administrativa, em janeiro de 1943 o escultor resolveu colocar uma pimenta artística ao monumento, sugerindo a inserção de duas estátuas alegóricas junto ao rochedo e às ondas. Incorporou a concepção artística à maquete e a mesma foi novamente remetida à Comissão Municipal de Cultura, que a aprovou. O prefeito também gostou do valor agregado ao monumento. No entanto, esses novos elementos encareceriam um pouco mais a obra, em cerca de Cr$ 30 mil (cruzeiros – ob.: Em 1º de novembro de 1942, o Brasil trocaria sua moeda que, de Réis, passaria a se chamar Cruzeiro, com o símbolo Cr$. Assim, o que era 100 contos de réis, passaria a ser considerado Cr$ 100 mil – cruzeiros).
Inserção aprovada, Fraccarolli fez novos orçamentos em empresas de cantaria, como a Jerônimo Azevedo Irmãos e a Irmãos Falcone, ambas de São Paulo, além da Hugo Porta, que mantinha oficinas na capital e em Santos. Enquanto as duas primeiras cobraram cerca de Cr$ 20 mil cada estátua alegórica em granito cinza, a Hugo Porta cobrou Cr$ 15 mil, vencendo a concorrência. Em fevereiro de 1943, era então, autorizada, a confecção das estátuas ao preço final de Cr$ 30 mil.
Paralisação das obras
Em abril de 1943, a Prefeitura convocava o artista Fraccaroli para prestar esclarecimentos a respeito da obra. Ele alegou dificuldades para obtenção do granito e informou que a elaboração do monumento deveria demorar mais do que todos podiam esperar. De fato, somente em dezembro de 1944 é que se teve notícias do trabalho, quando a empresa de mármore de Hugo Porta informou à municipalidade acerca da elaboração das figuras alegóricas. Nesta altura, Caetano Fraccaroli já havia concluído a estátua em bronze de Vicente de Carvalho e aguardava o término da base e das peças em granito.
A ideia era concluir a obra para que fosse inaugurada no dia de aniversário da cidade, em 26 de janeiro de 1945. Mas o próprio Hugo Porta encaminhava informação ao prefeito Antônio Gomide de que seria impossível. “Dada a natureza do serviço, muito trabalhoso, além de requerer profissionais competentes, que não há no momento, impede que se empregue mais de um obreiro para cada peça (figuras alegóricas), mister que se torna necessário maior tempo para a conclusão do trabalho”
Em março de 1945, uma outra novidade. Verificou-se a necessidade de colocar uma base (de pedra) a mais no local onde seria instalado o monumento, o que adicionaria o custo em mais Cr$ 6 mil (cerca de R$ 60 mil nos dias de hoje). Todos os valores referentes ao trabalho, tanto da empresa de cantaria, quanto do escultor, Caetano Fraccarolli, foram quitados em abril de 1945.
A instalação e a demora na inauguração
Em junho de 1945, o Departamento de Obras da Prefeitura finalmente instalava o monumento dedicado ao poeta Vicente de Carvalho junto ao pergolado construído no Boqueirão, ou Miramar, como os santistas se acostumaram a chamar aquele trecho de praia situado no final da avenida Conselheiro Nébias. Depois de quase um mês e meio arrumando o local, finalmente a estátua do ilustre vate santista estava pronta para fazer integrar à paisagem da orla santense.
Entretanto, diversos acontecimentos fizeram com que a inauguração fosse adiada. Veio o fim da Segunda Grande Guerra Mundial (2/set); o fim do governo do presidente Getúlio Vargas e do seu Estado Novo, com sua renúncia (29/out) e a eleição do General Eurico Gaspar Dutra (2/dez), que traria consequências para o turismo de Santos, por conta da proibição dos jogos de azar e o fim dos cassinos (30/abril/1946).
O tempo passava, e passava, e passava, e a estátua de Vicente de Carvalho se manteve coberta com um pano, aguardando sua libertação. Em maio de 1946, essa cobertura, de tão velha que estava, e ao sabor dos fortes ventos e chuvas, acabou raspando, deixando o monumento “desnudo”, conforme manchetou parte da imprensa paulista. “Vicente de Carvalho, morto, parece que continua fazendo sombra aos vivos”, estampou o Diário da Noite, da capital. O Jornal de Notícias, também de São Paulo, chegou a brincar com a situação, estampando na chamada: “Inauguraram” o Monumento a Vicente de Carvalho.
Finalmente, em julho, as autoridades decidiram inaugurar, pra valer, o monumento ao poeta do mar, aproveitando a agenda do então governador (interventor) de São Paulo à região. Rapidamente foi feito o convite aos familiares do homenageado e a Comissão de Cultura cuidou de convocar as escolas da cidade, para que tudo fosse coroado como uma grande festa. O dia da inauguração seria um domingo, mas no final do dia, para coincidir com a agenda de José Carlos de Macedo Soares, que iria a São Vicente na parte da manhã e participaria de um almoço no Parque Balneário Hotel. Assim, de fato, naquela tarde ligeiramente fria, Vicente de Carvalho seria “descoberto” de suas vestes protetivas, revelando um monumento belíssimo, voltado para o mar, a inspiração do vate santista.
Onde anos depois, quem diria, a estátua de Vicente de Carvalho era deslocada de seu lugar, cerca de 300 metros na direção do Gonzaga, e seria virada, ficando de costas para o elemento que permeava sobejamente seus belos poemas. Mas essa já é uma outra história.