A Tribuna renasce das cinzas depois de vandalizada pelos revolucionários de 1930

Redação e oficinas foram incendiadas por simpatizantes de Getúlio Vargas e da Aliança Liberal, num dia marcado por violência e intolerância. 

Fachada do prédio incendiado de A Tribuna na semana seguinte do empastelamento.

Santos, 24 de outubro de 1930. Os ânimos estavam à flor da pele naquela tarde de sexta-feira. As ruas da cidade santista, a exemplo de outros grandes centros brasileiros, achavam-se repletas de partidários e simpatizantes da Revolução promovida pela Aliança Liberal de Getúlio Vargas, que ascenderia ao poder usurpando do cargo o então presidente da República, Washington Luiz. O Brasil vivia momentos de tensão absoluta, encetados ainda no início do processo sucessório ao cargo máximo do país. Rompendo deliberadamente a alternância de poder costurada entre paulistas e mineiros em 1898 (na chamada República Café com Leite), o Chefe da Nação (que, apesar de fluminense de Macaé, fizera toda a carreira política na terra bandeirante) lançara como sucessor o companheiro Júlio Prestes, então presidente do Estado de São Paulo (cargo equivalente ao de governador), pelo Partido Republicano Paulista (PRP). Inconformado com a quebra da sistemática até então estabelecida, o presidente de Minas Gerais, Antônio Carlos Ribeira de Andrada (bisneto do santista José Bonifácio de Andrada e Silva), decidiu apoiar a candidatura do colega gaúcho, Getúlio Vargas, que tinha como companheiro de chapa o respeitado João Pessoa, presidente da Paraíba (sobrinho do ex-presidente Epitácio Pessoa), político idolatrado pelos nordestinos que, àquela altura, figuravam como boa parte da massa trabalhadora do Porto de Santos.

A eleição ocorrera em 1º de março em todos os vinte estados da época, além do Distrito Federal (Guanabara), tendo seu resultado apenas divulgado em 21 de maio, consolidando a vitória do candidato Prestes (1.091.709 votos – 59,39%) sobre seu principal oponente, Vargas (742.794 votos – 40,41%). A Aliança Liberal passou, então, a acusar o PRP de ter fraudado as urnas, mas sem exigir inicialmente a anulação do pleito. Boa parte dos correligionários de Getúlio Vargas queria, sim, tomar o poder à força de uma grande revolução. O gaúcho era reticente quanto ao método radical, mas o assassinato de João Pessoa em 26 de julho (ainda que por motivação passional, sem determinação comprovadamente política) desencadeou uma onda de comoção, nacional, além de um sentimento de indignação contra o Governo Central. Vargas, então, não tinha como fechar os olhos diante da maré revolucionária que se formou. Para se ter uma ideia do impacto da morte do presidente da Paraíba, em Santos, centenas de migrantes nordestinos, trabalhadores do porto e da construção civil, foram às ruas da cidade protestar contra o governo federal. Desta manifestação surgiu a ideia de homenagear o ilustre político paraibano, com a troca do nome da tradicional Rua do Rosário para Rua João Pessoa.

Os ares da revolução se consolidavam a cada dia. Getúlio, então, convencido do momento oportuno para colocar em prática o que acreditava ser o melhor caminho para mudar os rumos do país, partiu em comboio ferroviário na direção do Rio de Janeiro, a fim de depor o presidente Washington Luiz.  A marcha, no entanto, precisava passar por São Paulo, que se levantara contra o movimento, mas não conseguira impedi-lo. Antes mesmo de atingir a capital brasileira, em 24 de outubro, o Brasil sofrera o Golpe de Estado e o gaúcho, alguns dias depois, iniciaria uma nova era política no Brasil, ascendendo ao poder (em 1º de novembro).

Festa, vandalismo e empastelamentos

Assim que souberam oficialmente da deposição do presidente, centenas de partidários e simpatizantes da revolução promovida pela Aliança Liberal foram às ruas de Santos, festejar a novidade. No entanto, junto com as manifestações de regozijo somaram-se ímpetos de vingança, revolta e puro vandalismo. A exemplo do que acontecia no Rio de Janeiro, São Paulo e outras cidades importantes, a balbúrdia tomou conta do velho centro de Santos. Os alvos eram os partidários do PRP de Washington Luiz, em especial os jornais que manifestavam suas posições contra o movimento revolucionário, ou que reproduziam as notícias críticas vinda da capital federal. Os vespertinos Gazeta do Povo (fundado em 1917) e Folha de Santos (1927) foram as primeiras vítimas da turba ensandecida. Ambos foram praticamente destruídos. O jornal Commercio de Santos era outro alvo, mas acabou poupado por conta de um discurso proferido à porta do órgão pelo então deputado estadual Antônio Feliciano (que se tornaria prefeito de Santos nos anos 1950), membro do Partido Democrático (PD), aliado de Getúlio. Mas foi A Tribuna o periódico mais castigado pela massa popular. O jornal comandando por Manoel Nascimento Júnior foi duramente atacado no final da tarde por dezenas de vândalos. Eles invadiram a redação e as oficinas da empresa, que ficavam num amplo prédio na rua General Câmara, 90/94 (construído em 1911). O lugar foi incendiado pelos manifestantes e ardeu em chamas por horas. Quase tudo foi destruído, inclusive toda a coleção histórica do jornal, arquivada na Biblioteca da empresa, no segundo andar. O maquinário da gráfica também foi todo perdido.

Projeto do prédio que seria erguido para substituir o destruído pelo incêndio.

Manoel Nascimento diria mais tarde que “aquela fornalha gigantesca não sepultava definitivamente, nos escombros incandescentes que se amontoavam, o patrimônio da inteligência e das conquistas civilizadoras de Santos. Porque ali se fazia jornalismo por ideal. E ideais nunca morrem!”. A Tribuna ficou trinta e cinco sem circular, mas não o espírito aguerrido de seus jornalistas, gráficos e funcionários administrativos. Na edição de retorno, o jornal estampou em artigo de fundo: “Qualquer seja o credo político professado pelos seus elementos, seria injustiça atribuir ao legítimo e culto Povo de Santos a causa determinante do colapso que A Tribuna vem de sofrer na sua publicação. Descaso imperdoável e paradoxal absurdo seria, pois, realmente supor que esta obra, que é a própria obra do culto Povo santista, que é um pedaço considerável de sua própria vida e da sua tradição, fosse precisamente por ele votada ao extermínio.”

A Tribuna funcionaria por algum tempo, de forma provisória, na Rua Martim Afonso, enquanto o seu patrimônio era restabelecido. Dois anos depois, na tarde de 24 de dezembro de 1932, o jornal reinauguraria seu espaço, mostrando-se mais amplo e moderno, totalmente renovado, tal qual uma verdadeira Fênix, renascida das cinzas.

Fotos do sinistro tiradas na semana seguinte do empastelamento

Prédio de A Tribuna cerca de 15 anos antes do incêndio de 1930. Note-se que ele ainda não havia sido ampliado.