Filme rodado em Santos entre 1950 e 1951 pontuou marcas importantes como, por exemplo, utilizar “chuva artificial” pela primeira vez na indústria cinematográfica brasileira.
Santos, 8 de abril de 1950. Num reputado salão social da cidade, dezenas de jovens se entregavam à dança, aos mexericos e aos cortejos, em meio a um dos mais concorridos bailes de máscaras do tradicional “Sábado de Aleluia”. No centro daquele palco de folia, um rapaz insinuava-se para uma misteriosa “donzela”, cujo rosto estava coberto por uma diminuta máscara negra. Ao final, a paquera surtiu efeito, a ponto de ambos se aproximarem, dançarem e perceberem que tinham muitas coisas em comum. Amor à primeira vista, diriam os mais românticos. Quando o baile terminou, o jovem fez, como esperado, aflorar seu lado cavalheiresco, e colocou-se à disposição para conduzir sua companhia à salvo, até sua casa, em meio a uma típica madrugada chuvosa de Outono. Tal qual um legítimo “gentleman”, o jovem, de nome Raul, ofereceu-lhe o sobretudo, transformando-o numa espécie de capa, para protegê-la da incômoda chuva que insistia em cair. Deixou a moça, Inês, como prometido, na porta de sua residência. Passou o dia inteiro pensando na jovem e naquela mesma noite, sob o pretexto de pegar de volta o sobretudo, retornou ao seu endereço. Porém, não foi recepcionado pela moça a qual se apaixonara, mas pela mãe dela que, ao tomar nota da intenção do rapaz agitado à sua porta, arregalou os olhos e confidenciou-lhe algo extremamente terrível e instigante. A filha estava morta havia alguns anos, e jazia numa campa do Cemitério da Filosofia, no local conhecido como Alameda da Saudade. Atordoado, Raul não quis acreditar na história. Reputou-a como uma brincadeira de mal gosto, uma desaprovação por parte da mãe de Inês. No entanto, curioso com a fantástica história, decidiu ir até o Saboó e, lá, não só encontrou a estreita viela, mas, no jazigo de número 113, viu algo que quase fez o coração parar. Na lápide da desgastada campa estava a fotografia da jovem que conhecera na noite anterior e em cima do túmulo, o sobretudo que havia lhe emprestado
O roteiro fantástico acima descrito é baseado em uma antiga lenda urbana da cidade santista, replicada por alguns escritores, como Humberto de Campos, e que se tornara argumento cinematográfico para o longa “Alameda da Saudade, 113”, lançado em abril de 1950, com grande interesse do público. Dirigido pelo reconhecido diretor, crítico de cinema e colunista do jornal Folha da Manhã, Carlos Ortiz, a película contou com a força de trabalho de um grande grupo de colaboradores ativos e eficientes, entre os quais o advogado e pintor Ortiz Monteiro; o cinegrafista ucraniano George Tamarski; o cenógrafo e intérprete Rubens Queiroz (que fez o papel do protagonista Raul); o jovem crítico de cinema Bráulio Pedroso; o montador Raimundo Duprat; o desenhista Guilherme Galiano e o coveiro (sim, um coveiro de verdade), Antônio Eleutério. Carlos Ortiz estava decidido a realizar o filme sobre a famosa história que narrada pelas famílias santistas nas “noites de lua cheia”.
Santos, cenário de cinema
Para o papel da jovem e misteriosa Inês, Ortiz selecionou a atriz Sonia Coelho, que estreava no mundo do cinema ao lado de Queiroz, também novato na telona. O diretor havia optado por atores calouros por acreditar que desempenhariam seus papeis com mais vontade e espontaneidade, “coisa que os artistas profissionalizados não mais possuem”, escreveria depois nas suas colunas de críticas nos jornais. Sonia era jovem e muito bonita, dotada de instintiva capacidade de interpretação. Rubens, por sua vez, era considerado um caso raro no campo cinematográfico nacional, lúcido e educado. Todos diziam que poderia construir uma carreira de prestígio caso não cometesse os erros que acabou cometendo ao longo da vida.
Para os demais papeis, Ortiz empregou, o quanto foi possível, pessoas do próprio ofício indicado no argumento, como no caso do coveiro, vivido pelo negro Eleutério, responsável por imprimir uma marca de comovente sinceridade a uma das mais importantes sequências da história.
Dispondo de escassos recursos financeiros e uma aparelhagem insuficiente, a equipe de gravação liderada por Ortiz deslocou-se pelas ruas da cidade praiana e portuária, que acabou se tornando cenário de boa parte do filme. O processo de gravação levaria meses, entre os anos de 1950 e 1951. A população santista acompanhava e participava do trabalho paciente e sacrificado de Ortiz e seu time. A seriedade com que encaravam o ofício e a dedicação com o qual cumpriam as tarefas acabaram cercando o elenco e equipe técnica de muita estima popular.
Multidões atentas aglomeravam-se em torno dos locais de filmagem, em especial na orla da praia, junto ao monumento dedicado ao poeta Vicente de Carvalho. Antes de iniciar cada tomada, Ortiz explicava ao povo que acompanhava a importância do cinema e a função de cada equipamento utilizado nos sets.
Repórter policial queria ser indenizado
Quando as últimas sequências noturnas de gravação eram produzidas, aconteceu um imprevisto. No momento em que a sonorização e a montagem definitiva estavam sendo finalizadas, um advogado apareceu no estúdio querendo falar urgentemente com Ortiz Monteiro. Ele queria entregar-lhe uma intimação que o acusava de plágio, alegando que o argumento do filme, ou seja, a história que estava sendo rodada, era de autoria de seu cliente, um repórter policial da cidade chamado Orlando Criscuolo.
O dito jornalista considerava-se o “criador da lenda”, dizendo que em 1947, havia redigido uma “crônica policial” cujo conteúdo era muito similar ao roteiro conduzido por Ortiz. Quando tomou conhecimento de que o roteiro das filmagens em Santos trazia a mesma história, o repórter decidiu exigir uma indenização por violação de Direitos Autorais: Oitenta Mil Cruzeiros (o equivalente a R$ 400 mil nos dias de hoje. E, caso não fosse atendido, ameaçava lançar uma campanha jornalística de desmoralização da pessoa de Carlos Ortiz.
Busca e apreensão
Como Ortiz não cedera às chantagens do repórter policial, os acusadores entraram com requerimento junto ao juiz da 1ª Vara Cível da Capital, pela busca e apreensão do filme, objetivando impedir sua exibição nos cinemas. O diretor de “Alameda da Saudade, 113”, no entanto, contra-atacou, contestando a ação e registrando o argumento do filme junto à Biblioteca Nacional, anexado a documentos que comprovavam ser a história de domínio público.
O juiz da 1ª Vara Cível da Capital, Alípio Bastos, que também é escritor e gozava de grande respeito nos meios culturais e jurídicos de São Paulo, aceitou a argumentação da defesa, feita pelo advogado Modesto Naclerio Homem, e deu ganho de causa a Ortiz, que pode exibir sua “Alameda da Saudade, 113”em todas as salas de cinema do país.
Logo após o lançamento no circuito nacional brasileiro, “Alameda da Saudade, 113” foi duramente criticado, sendo apontado como uma “barbaridade”, “um filme de péssimo gosto”. Por outro lado, algumas revistas especializadas, como a Scena Muda, elogiaram a produção de Carlos Ortiz, reputando-a como uma das melhores películas lançadas em 1952. Este antagonismo fez com que o público, curioso, fosse conhecer de perto a história baseada na lenda santista, exibidos nas principais salas do Brasil.
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