Primeiro livro de Zélia Gattai, esposa de Jorge Amado, traz detalhes da epopeia vivida por seu pai, Ernesto, o “atrevido” italiano que enfrentou uma viagem de mais de 70 horas.
Salvador, 3 de dezembro de 1978. Zélia Gattai, esposa do renomado escritor baiano, Jorge Amado, registrava num modesto caderninho de capa mole as lembranças que, aos poucos, resgatava de sua infância, vivida com muita alegria nas décadas de 1910 e 1920 na encantadora Alameda Santos, então uma modesta rua que corria (e ainda corre, embora não tão modesta) paralela à imponente Avenida Paulista, onde se destacavam, à época, alguns dos mais belos e imponentes casarões pertencentes aos influentes “barões” do café, banqueiros e industriais de São Paulo. Entre as inúmeras histórias de uma vida repleta de aventuras junto a seus familiares e outros italianos de espírito anarquista, como seu pai, Ernesto, ela recordava-se sempre de ter ouvido um episódio em especial, que a deixava orgulhosa: de quando o pai empreendeu uma viagem inédita de ida e volta de São Paulo a Santos em um automóvel.
Tal aventura teria ocorrido, segundo se lembrava, no ano de 1910, quando ainda nem sonhava em vir ao mundo (Zélia foi a caçula de uma família de cinco filhos, nascida em 2 de julho de 1916). No entanto, o périplo de Seu Ernesto era assunto recorrente nos jantares da família e, desta forma, ela fez questão de anotá-lo em seu caderninho, registro esse que, junto a outros, daria origem ao seu primeiro livro, “Anarquistas Graças a Deus”, lançado em 1979.
Zélia contava que os pais haviam se instalado na Alameda Santos ainda no final da primeira década do Século 20, junto com seus três irmãos mais velhos (Remo, Vanda e Vera). Ali, Seu Ernesto, hábil mecânico, montou uma oficina de automóveis que logo ganhou fama e muitos clientes (especialmente entre os ricos da região da Paulista). Ela escreveu: “Em 1910, a oficina de meu pai estava no auge. A clientela crescia e a sua reputação como especialista em motores se expandia por toda a capital. Isso se potencializou quando, pilotando um “Motobloc” (veículo de origem francesa), ele realizou a famosa viagem que empreendeu pela Serra do Mar até Santos”.
Nesse fato, há historicamente algumas coincidências. A primeira é que a primeira viagem de automóvel entre São Paulo e Santos, ocorrida em abril de 1908, realizada pelo então filho do prefeito de São Paulo, Antônio Prado Júnior, também foi concretizada a bordo de um Motobloc. E, da mesma forma, a expedição, ou “reide” (como chamavam na época), liderada pelo pai de Zélia Gattai, também contou quatro integrantes. No caso de 1908, foram Prado Júnior, Bento Canabarro, Clóvis Glicério e Mário Cardim. Em 1910, foram Ernesto, Amadeu Strambi, Miguel Losito e Antônio dos Santos.
Descobriu que não era o primeiro a ir, mas seria o pioneiro no “bate e volta”
Sempre evidenciando o espírito livre que permeava sua família e amigos italianos, Zélia depositou em suas anotações o que se lembrava da narrativa de Ernesto sobre a viagem para Santos. “Não foi difícil ao meu pai encontrar companheiros para acompanhá-lo na aventura. Por outro lado, ele teve que obter autorização da polícia para realizar a empreitada planejada. E, quando foi assinar o termo de compromisso, onde assumia a responsabilidade por qualquer eventualidade durante a viagem, descobriu que não era o primeiro a realizar tal proeza, como imaginava. Um intrépido (Prado Júnior) já a havia feito recentemente (em 1908), porém apenas como uma viagem de ida a Santos, recuando na desafiadora subida da Serra no retorno”.
Surpreso por não saber do fato, mas determinado a pontuar uma segunda marca (ir e voltar), Ernesto e seus companheiros, então, decidiram realizar o reide completo. Assim, partiram ao amanhecer (Zélia não especificou em suas memória o dia e mês da aventura, apenas pontuando que fora em 1910), seguindo pela Estrada do Vergueiro. Até o Alto da Serra o caminho foi tranquilo, pois o piloto (Strambi) conhecia bem a rota por conta dos piqueniques que costumava fazer na região.
A partir do Alto da Serra, contudo, o desconhecido se apresentou como a grande incógnita. A estrada aberta no século anterior (Sec. 19) fora planejada apenas para burros de carga e veículos de tração animal (carroças e carruagens), não permitindo a passagem de automóveis (até porque eles não existiam). Assim, equipados com facões, machados, pá e picareta, os aventureiros abriram caminho cortando árvores, removendo pedras e superando obstáculos como pedras, troncos caídos e lama formada pelas nascentes. “Eles enfrentaram animais e foram picados por mosquitos venenosos. Na escuridão densa da mata, avançaram pela noite, iluminados apenas pelos faróis a carbureto”, escreveu Zélia.
Cerca de 30 horas depois (também muito próximo da viagem de Prado Junior em 1908), Ernesto Gattai e seus companheiros finalmente chegavam a Santos, no cair da tarde. Estavam exaustos, arranhados, sujos e inchados pelas picadas de insetos, mas radiantes de felicidade. A descida foi tão penosa que um dos companheiros sugeriu interromper o plano, retornando de trem e enviando o carro por gôndola da São Paulo Railway (como fora feito na viagem de 1908). “No entanto, o líder da expedição, meu pai, era obstinado (ou, como diria sua esposa, atrevido): se desceram, poderiam subir. Seriam pioneiros, os primeiros a realizar tal façanha. Quem quisesse desistir, que o fizesse. Ernesto Gattai voltaria dirigindo seu carro valente, capaz de escalar qualquer Serra e aguentar qualquer tranco”, pontuou Zélia em suas memórias.
Os corajosos companheiros, então, renovaram o ânimo e enfrentaram, no dia seguinte pela manhã, a parte mais difícil da jornada: a subida da Serra de Santos, o que, obviamente, exigiu mais tempo e esforço. Dois dias inteiros depois, ou 48 horas, os quatro exploradores da estrada para Santos finalmente retornavam ao ponto de partida, ilesos e com o bravo Motobloc enfeitado com ramos de flores, os únicos louros que receberam dos amigos e vizinhos que souberam da façanha. “Alguns poucos jornais noticiaram o feito, e o nome e retrato do automobilista Ernesto Gattai apareceu pela primeira vez na imprensa”, escreveu a filha orgulhosa, para concluir o pequeno capítulo do seu futuro primeiro livro.
Feliz por lembrar de muitas coisas da história de seu pai, Zélia se levantou para encontrar-se com o marido, Jorge Amado, que assim como ela estava concentrado em escrever, produzindo mais uma das suas maravilhas literárias. O mestre baiano, membro da Academia Brasileira de Letras desde 1961, estava então terminando o romance “Farda, Fardão, Camisola de Dormir”, ambientado justamente na ABL. O autor dos celebrados “Capitães de Areia”(1937), Gabriel Cravo e Canela (1958), Tenda dos Milagres (1969) e Tieta do Agreste (1977), entre dezenas de outros, era o maior incentivador de Zélia a se tornar escritora. Por isso que, quando ela mostrou-lhe as anotações sobre a viagem para Santos, o baiano aplaudiu. Jorge Amado sabia que “Anarquistas Graças a Deus” seria um sucesso, como, de fato, se tornou.