Guardadas numa singela caixa de papelão dentro da Biblioteca Alberto Sousa, quatro pás cerimoniais do início do século 20 revelam a tradição de uma época em que era comum o lançamento de “pedras fundamentais”
Santos, domingo, 9 de junho de 1907. Ela estava lá, reluzente, impecavelmente forjada em prata, diante das mais de 1.500 pessoas que haviam se dirigido para as encostas do Monte Serrat, no local denominado “Duas Pedras”, à Rua Andrade Neves, canto da Rua Bittencourt, para celebrar um grande acontecimento da cidade. Após anos de espera, enfim o Corpo de Bombeiros de Santos assentaria a pedra fundamental para a construção de sua sede própria, num projeto idealizado pelo engenheiro e arquiteto alemão Maximiliano Emílio Hehl (o mesmo que, anos mais tarde, projetaria a Catedral de Santos). Praticamente todas as autoridades civis e militares do município estavam presentes ao evento solene, abrilhantado ainda mais pela apresentação das bandas do próprio Corpo de Bombeiros e da Sociedade Humanitária dos Empregados do Comércio. E ela à espera de seu momento de glória. Afinal, era a personagem principal do dia.
Um pavilhão ricamente ornado por flores e plantas tropicais abrigava as pessoas de maior relevo da sociedade santista, como o intendente municipal (cargo equivalente ao de prefeito), Carlos Augusto de Vasconcelos Tavares. Além de uma apresentação de exercícios dos bombeiros, realizada na Rua Bittencourt, o ato contou com a deposição de uma lata (espécie de cápsula do tempo) que continha todos os tipos de moedas em circulação no Brasil, as edições do dia de todos os jornais da cidade e da capital, e um documento que atestava que a ideia da criação do Corpo de Bombeiros da cidade partira do sr. João Braz de Oliveira, por indicação apresentada por ele na Câmara Municipal em 27 de julho de 1894, quando era vereador.
Após os discursos de praxe, ela, enfim, foi retirada de sua caixa de madeira para brilhar no ato de lançamento da pedra fundamental da futura edificação-sede do Corpo de Bombeiros. Aquele tipo de cerimônia era bastante tradicional do país, e tinha até paraninfos. No caso, os privilegiados foram o juiz de direito da Segunda Vara, dr. Luiz Porto Moretz Sohn de Castro, e o engenheiro sanitarista, dr. Francisco Rodrigues Saturnino de Brito, então chefe da Comissão de Saneamento da cidade, tido como “o maior braço que trabalhava para o engrandecimento de Santos”. Foi ele quem teve a primazia de tomar ela em mãos, a elegante pá (ou colher) cerimonial para, assim, assentar a primeira colherada de cimento na obra que faria nascer o “Castelinho dos Bombeiros”
Assentamento de pedras fundamentais: tradição da humanidade.
A chamada “Cerimônia de Abertura de Terra” ou “Lançamento da pedra fundamental” (em inglês: Groundbreaking), é uma tradição em diversas culturas que celebram o primeiro dia da construção de uma edificação. Esses atos são frequentemente assistidos por dignitários, como políticos e empresários. O principal instrumento desta ação é a “pá” (em alguns casos também chamada de “colher”) que, via de regra, são especialmente fabricadas para o evento. Algumas são feitas em ouro, outras em prata, como fora o caso da utilizada por Saturnino de Brito na pedra fundamental do Castelinho dos Bombeiros. Outra tradição é gravar na pá as informações sobre qual papel ela teve na história. No caso da pá do Castelinho, mandada fazer pela Câmara Municipal de Santos, gestão 1905/1907, ela traz as inscrições:
Santos, 9-6-07
Assentamento da primeira pedra do Quartel dos Bombeiros
Câmara Municipal
1905-1907
A ideia para estes tipos de objetos de valor histórico é que eles sejam preservados e expostos à sociedade para que ela se lembre das suas conquistas do passado. A pá do Castelinho ficou por muito tempo exposta no próprio quartel dos Bombeiros, até que em algum ponto da história ela foi enviada para a Prefeitura de Santos, que a manteve em exposição na biblioteca central, num belíssimo móvel de madeira e vidro. Em algum ponto do tempo, a pá foi para alguma caixa e ninguém mais se lembrou dela.
O resgate da pá (ou das pás)
Há algum tempo, soubemos da possibilidade da famosa pá de 1907, do Castelinho dos Bombeiros, estar guardada na Biblioteca Alberto Sousa, mantida pela Prefeitura na edificação da Sociedade Humanitária dos Empregados do Comércio. No dia 13 de agosto de 2021, depois de solicitar permissão ao setor de Bibliotecas do Município, conseguimos, enfim, encontrar o histórico objeto, tido como o “Santo Graal” dos Bombeiros. Estava dentro de uma velha caixa de papelão na Biblioteca Alberto Sousa. E para nossa surpresa, ela não estava sozinha. Havia outras “irmãs” raríssimas dividindo o esquecido espaço: a pá de assentamento da pedra fundamental do monumento de Bartolomeu de Gusmão (utilizada pelos famosos aviadores portugueses Sacadura Cabral e Gago Coutinho – os primeiros a atravessarem o Atlântico Sul de avião) em cerimônia realizada no dia 12 de julho de 1922; a pá da pedra fundamental da edificação do Grupo Escolar Cesário Bastos, de 25 de agosto de 1907 e do Novo Mercado Municipal, em 26 de janeiro de 1939 (ocasião em que Santos completava 100 anos na condição de cidade).
Agora, à luz do resgate, retiradas da escuridão do esquecimento, essas pás da história podem ganhar novamente um lugar de destaque e serem vistas pela população, como símbolos da tradição de uma época esquecida do passado, ponto de origem de alguns dos grandes patrimônios santistas.