O “Rei” Roberto Carlos e o caso do “Jaguar 67” apreendido na Alfândega

Trabalhadores das Docas, da Polícia Marítima e da Alfândega ficaram curiosos com o novo carrão do líder da Jovem Guarda.

Carro presenteado pelo dono da gravadora CBS ao líder da Jovem Guarda ficou preso por nove meses, retido pelas autoridades alfandegárias. Neste tempo, o “Brasa” esteve na cidade santista dez vezes, sempre na esperança de libertar o tão desejado “possante”. No final conseguiu liberar o veículo e foi realizar outro sonho: casar-se com Cleonice Rossi, o que fez três dias depois.


Santos, 7 de maio de 1968
– Um alvoroço tomou conta das imediações de uma pequena garagem situada na rua Visconde de Vergueiro, no Valongo. É que naquele dia de maio, em 1968, um dos maiores astros da música brasileira ali estava para finalmente retirar, e levar para casa, um objeto tão desejado, que estava “preso” em Santos havia nove meses. Era como uma gestação, em relação ao tempo e pela ansiedade do “pai”, que recebia, finalmente, com alívio, sua “criança de quatro rodas”, um “Jaguar” E-Type SI 67 vermelho, que lhe fora dado de presente pelo dono da gravadora inglesa, a CBS (Columbia Broadcasting System), Michael Dann.

O astro em questão era ninguém menos do que o “Rei do Iê-iê-iê” e símbolo da Jovem Guarda, o cantor Roberto Carlos. Estima-se que nunca, em toda a história de sua vida, ele tenha vindo tantas vezes a Santos (dez vezes, entre agosto de 1967 e maio de 1968), tudo por causa do carrão.

Presente preso na Alfândega

O “calvário” de RC teve início em 5 de agosto de 1967, quando aconteceu o desembarque, no cais do armazém 16, do veículo importado, chegado ao Brasil a bordo do navio “Arlanza”, que saíra de Londres pouco mais de um mês antes. Além do “mimo” que chegava da Europa especialmente para o “Rei da Juventude”, a embarcação transportava 138 passageiros e 36 toneladas de cargas diversas, a maior parte de pescados (congelados e em conserva).

O carro de RC no pátio do armazém 19. No vidro, escreveram com tinta branca: “Arlanza” (no do navio que trouxe o veículo), Roberto Carlos Braga (o nome do dono), 5/8/67 (data da chegada do veículo). O curioso na foto é a inscrição: “É uma brasa, mora”.

Descendo ao solo santista, debaixo de chuva forte, o “Jaguar” (que era hidramático, possuía quatro lugares, 1.372 quilos de peso total e capacidade de alcançar a velocidade de 260 km/h) foi levado, com muito cuidado, para o armazém 19 externo, onde conferentes da Alfândega realizaram uma minuciosa vistoria antes de poder liberá-lo ao seu dono. Os funcionários aduaneiros só descobriram quem era o proprietário do inusitado veículo graças a uma papeleta grudada no vidro dianteiro, onde estava escrito: “Roberto Carlos Braga, rua Albuquerque Lins, nº 532, apartamento 31, São Paulo, SP”. Teve gente que anotou os números para jogar no bicho. Pelas informações chegadas mais tarde à Alfândega, Roberto Carlos não pagaria nenhuma taxa aduaneira, porque o ministro da Justiça Luiz Antônio da Gama e Silva (integrante do governo do general Artur da Costa e Silva) havia-lhe concedido isenção.

O “Brasa” (apelido que Roberto recebera da imprensa da época) esteve em Santos no dia 7 de agosto apenas para pegar pessoalmente o seu carrão vermelho, acompanhado de uma “loira” (que mais tarde fora identificada como sendo Cleonice Rossi, com quem RC se casaria no ano seguinte) e de um amigo. Assim, mal chegando a Santos, o cantor rumou para o armazém 19 da Cia. Docas, e lá foi instantaneamente reconhecido por várias pessoas que, curiosas, começaram a aglomerar as imediações.

Acompanhado de fiscais da Alfândega, Roberto Carlos mediu de cima a baixo o presente recebido do presidente da CBS, Michael Dann, com quem fizera amizade durante o Festival de San Remo, na Itália. Feliz como uma criança, ele alisou com a mão cheia de anéis a pintura de um paralama, depois abriu a porta do carro e se sentou ao volante. Um dos fiscais dissera:

– Contente, Roberto?

– Claro. Há tanto tempo que eu esperava esse presente, que vim aqui só para vê-lo. Agora estou com quatro carros, dois no Rio e dois em São Paulo.  Mas esse é diferente. Nos grandes, a gente tem apenas a sensação de estar num carrão. Neste aqui, a gente sente a máquina. Claro que eu não sou de correr e obedeço às leis. Nunca passo de 200 por hora.

Roberto, então, saiu do carro, abrir o capô e ficou um longo tempo examinando o motor de seis cilindros e três carburadores do Jaguar. A loira, bonita, de botas e mini saia, sorria ao seu lado.

Jaguar modelo 1967, igual ao que RC ganhou da CBS inglesa.

Trabalhadores portuários e outras pessoas que por ali passavam, começaram a se aproximar do “Brasa”. Antes de começar a distribuir autógrafos, RC ainda teve tempo de falar para o pessoal de imprensa que chegara ao local. Em sua pequena e ligeira entrevista, ele contou que, em vinte dias, lançaria seu novo compacto com as músicas “Como é grande o meu amor por você” e “Por isso estou aqui”.  Após atender os jornalistas, o cantor saiu do armazém distribuindo autógrafos para grupos de fãs que o rodeavam. Ao seu lado, seguiam a loira e o amigo. Mas, Roberto, ao final da inspeção, voltaria para casa sem o carro, pois a falta de documentos que deveriam ser apresentados pelo “Rei”, acabou complicando a liberação.

Querendo copiar Pelé e Mauro

Roberto Carlos chegou a comunicar a funcionários aduaneiros que o ministro da Justiça, Gama e Silva, teria pedido a um deputado que propusesse pela votação de uma lei especial para garantir a liberação do veículo, a exemplo do que fora feito, em caso idêntico àquele, com os Mercedes Benz que o jogadores de futebol do Santos, Mauro e Pelé, ganharam na Alemanha. Mas a coisa não andou.

Faltou documento

Ao longo de quatro meses, a assessoria do cantor tentou desembaraçar o caso. Em 22 de dezembro de 1967, Roberto regressaria a Santos, mais uma vez, para tentar liberar o Jaguar. Mas o “Brasa” ainda não havia apresentado à Alfândega os documentos que comprovavam a doação do veículo. Além disso, segundo o art. 4º da Lei 2.410 de 1955, carros com valor superior a 3.500 dólares (ou NCr$ 11.200,00 – cruzeiros novos, equivalente a R$ 224 mil em 2023) não poderiam ingressar no Brasil. A única exceção a esta regra era conferida aos carros para uso de diplomatas, os quais o Itamaraty concedia visto especial, isentando-os inclusive das taxas aduaneiras.

Ação Judicial

Ainda no final de 1967, um agente Fiscal chegou a enviar uma representação ao inspetor da Alfândega, solicitando a apreensão do carrão vermelho de Roberto Carlos. Em 14 de dezembro, o Tribunal Federal de São Paulo solicitou informações sobre o andamento do processo administrativo, uma vez que RC manifestou pela imprensa que iria ingressar com uma ação judicial alegando que o carro valia menos do que os 3.500 dólares indicados na Lei 2.410. Mas o preço de mercado apontava para um valor extremamente diferente.

Ocorre que, para dar início ao processo judicial, Roberto Carlos teria de pedir ao juiz federal, antes de qualquer ação, a chamada “caução preparatória”, isto é, o juiz precisaria autorizá-lo a depositar as multas cambiais, tributos e demais ônus incidentes sobre o automóvel. Tudo isso para que o carro não entrasse “em comisso”, ou seja, não ultrapassasse o prazo máximo para a permanência em armazém – que era de seis meses – e acabasse sendo leiloado pela Alfândega.

Por isso, antes mesmo de deferir sobre a “caução preparatória”, o juiz federal oficiara à Inspetoria da Alfândega, no intuito de saber a quantas andava o processo de apreensão do veículo.

Finalmente, livre para correr!

E foi no dia 7 de maio de 1968, que, finalmente, o Jaguar 67 de RC foi liberado pelas autoridades alfandegárias. Mas não sem antes Roberto pagar 68 milhões de Cruzeiros Velhos (cerca de R$ 2,2 milhões em 2023) a título de fiança e obter um mandato para retirar o veículo.

Ainda que chateado com o desenlace da história, o cantor fez questão de descer a Serra do Mar com um Chrysler “Esplanada” 1968, e enfrentar as “Curvas da Estrada de Santos” (música que, aliás, seria composta em 1969), para pegar seu novo “brinquedo”. Mas, antes de sair dirigindo, Roberto ainda tomou um “chá de cadeira” de uma hora na Alfândega, para consegui a tão desejada licença especial.

Apesar de te levado seu motorista particular, Eurico Tranquilino, e seu mecânico de confiança, Luiz Yamaki, o cantor fez questão de ele mesmo conduzir o Jaguar para São Paulo.

Roberto Carlos, em Santos, com sua futura esposa, Cleonice, ou simplesmente “NIce”. Um garoto santista queria o autógrafo dela, e não dele!

“Não quero seu autógrafo”

Roberto Carlos estava aliviado e contente. Na garagem do Valongo, cerca de 40 pessoas, a maioria mecânicos e moradores da vizinhança, vieram para ver de perto o astro da Jovem Guarda. Ao seu lado, já sentada no banco de passageiro do Jaguar, a agora noiva, Cleonice (a misteriosa loira que viera com RC na primeira vez, em agosto de 1967). De repente, um garoto surgiu por entre os fãs amontoados na porta da garagem e pediu licença a Roberto Carlos para obter um autógrafo de Nice. O “Brasa”, intrigado, negou o pedido: “Ela não é do meio artístico e não quero que se acostume com esse negócio de autógrafo”. Então, ofereceu o seu autógrafo ao garoto, que o recusou, dizendo: “O autógrafo dela para mim é mais importante do que o seu”. O “Rei” achou graça.

Sobre o automóvel, RC repetia a todo momento: “Até que enfim este brasa de Jaguar lindo, é meu”. Satisfeito com o desfecho do caso, ainda que ele tivesse durado nove e intermináveis meses, e ter pagado uma boa grana para liberá-lo, o cantor concordou em posar para fotos com os fãs e para a imprensa. Só que, antes, pediu um tempo para arranjar o cabelo. Tudo certo, posou dentro o fora do carrão inglês, mas sempre sem a Nice do seu lado. Ela, para Roberto, deveria se manter anônima.

Depois de pagar as taxas e obter um mandado, Roberto Carlos pôde pegar seu Jaguar e levá-lo para casa. 

Voltou dirigindo para São Paulo

Eram exatamente 16h05, quando os despachante alfandegários chegaram com a documentação definitiva. Roberto ainda ficou mais um pouco na garagem do Valongo. Agradeceu a todos, assinou autógrafos e despediu-se, antes de tentar ligar o motor que, na primeira partida, não pegou. Na segunda, entretanto, o ronco do Jaguar se fez presente e revelou toda a potência de seu motor.  O “Rei” acelerou o carango, ao lado de sua futura esposa, e partiu para a estrada de Santos, cujas curvas se tornariam, um ano depois, fonte inspiradora para uma de suas mais belas canções.

Depois de deixar Santos com seu tão desejado Jaguar, RC foi realizar outro sonho: casar-se com Cleonice Rossi, o que fez três dias depois, em Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. De lá, foi passar a lua-de-mel em Nova Iorque.