Por um dia, os santistas se tornaram “súditos” do Rei da Bélgica

Rei Alberto I, da Bélgica

Visita histórica do Rei Alberto I a Santos completou 100 anos em 2020. Como recordação desta passagem repleta de entusiasmo e reverência, a cidade daria o nome do monarca a uma importante via na Ponta da Praia.

Caminho do Mar, 12 de outubro de 1920. O relógio marcava 12 horas em ponto quando o inusitado cortejo composto por doze elegantes veículos iniciava a descida da Serra do Mar onde, cadenciadamente, passou a superar, uma a uma, as sinuosas curvas da estrada de Santos naquela manhã enevoada de terça-feira. À frente da elegante comitiva motorizada estava um monarca, o primeiro a atravessar aquelas paragens desde a última visita do velho Imperador D. Pedro II a Santos, que ocorrera em 1888, ou seja, havia mais de trinta anos. Sua Alteza, Alberto I, Rei da Bélgica, figura extraordinária e reconhecido como um dos grandes heróis da Primeira Grande Guerra Mundial (1914/1918), homem idolatrado por seu povo, já estava no Brasil fazia vinte e três dias, em companhia da esposa, a Rainha Elizabeth da Bavária. A passagem pela cidade de Santos não fazia parte dos planos originais do casal real mas, devido aos insistentes pedidos da colônia franco-belga de São Paulo, o famoso porto brasileiro foi incluído no roteiro. E, naquela altura, já estava agregado à comitiva o jovem herdeiro do trono do País de Flandres, o príncipe Leopoldo, de 18 anos de idade.

À medida que os carros venciam o prístino caminho da Serra do Mar, apesar do nevoeiro e da fina chuva que insistia cair, Alberto se encantava com a cordilheira atlântica, a muralha que outrora impusera obstáculos aos desbravadores coloniais, e imaginava-se conquistando penhascos e promontórios, sonho característico aos amantes do alpinismo, tal como era o soberano belga. Embora aquela não fosse uma cadeia montanhosa que impusesse desafios à altura de aventureiros da estirpe do líder da nação belga, acostumados a escalar os picos mais instigantes dos Alpes Suíços e Italianos, aquele maciço de rochas praticamente coberto de árvores nativas o intrigava. Quem sabe não se aventuraria escalando uma das cachoeiras locais?

Mas não, aquela não era hora reservada a deleites privativos, mas aos compromissos protocolares que a posição de seu cargo impunha naquela viagem inédita e histórica ao Brasil, a primeira de um monarca europeu à América do Sul. Ele havia chegado ao Rio de Janeiro no dia 19 de setembro, sendo recepcionado pelo presidente Epitácio Pessoa. Permaneceram na capital federal até o dia 28, onde tomavam banho de mar na famosa praia de Copacabana quase todos os dias pela manhã. Em seguida foram até Teresópolis, Petrópolis, Belo Horizonte e São Paulo, onde chegaram em 4 de outubro. Foi na capital bandeirante, diante dos apelos feitos por membros da colônia franco-belga, que decidiu conhecer a cidade que abrigava o tão aclamado “Porto do Café”.

Capa do Jornal A Tribuna noticiando a passagem do monarca europeu pela cidade santista.

Cidade em festa

Assim, após vencerem a Serra do Mar, chegaram finalmente ao Cubatão, no pé da Serra, onde o intenso tráfego de veículos chamou a atenção dos poucos moradores daquele arrabalde. Mais à frente, na altura do Saboó, uma comissão de autoridades santistas aguardava a visita ilustre e real. Se dava ali, então, a transformação momentânea da terra santista em território simbólico belga.

A quantidade de pessoas que lotavam as ruas da cidade era impressionante. Já no Valongo, grande massa popular se deslocou para saudar o soberano estrangeiro. Como estamparia o jornal A Tribuna no noticiário do dia seguinte: “o entusiasmo do povo não conheceu barreiras nem se preocupou com as exigências protocolares”. Os santistas, embora afeitos a visitantes ilustres, em função do porto, protagonizaram algo até então nunca visto. Afinal, não era todo dia que a velha cidade recebia a visita de um rei, uma rainha e um príncipe europeu. A curiosidade despertou a atenção de crianças, jovens e das mulheres, que ficaram encantadas com o requinte da vestimenta dos soberanos belgas, sobretudo da rainha Elizabeth da Bavária. O presidente do Estado de São Paulo, Washington Luiz, também presente na comitiva, fez às vezes de cicerone de Alberto I e os seus acompanhantes, ao lado do prefeito santista, coronel Joaquim Montenegro, que recebeu das mãos de Alberto I a medalha da Ordem de Leopoldo II (tio de Alberto I, a quem sucedeu no trono em 23 de dezembro de 1909). Como intérprete, fez o papel o vice-cônsul belga em Santos, Júlio Dineux.

O cortejo real passou pelas principais vias da cidade, atraindo multidões. Bondes lotados de curiosos paravam ao longo do caminho. Os carros passaram pelas ruas São Leopoldo, Marquês de Herval, São Bento e Santo Antônio (atual Rua do Comércio), sob chuvas de flores. Na altura da Rua XV de Novembro, diante da Bolsa de Café (a antiga, abrigada no Palacete Pedro Santos – esquina com a atual Rua do Comércio), a banda de música da Sociedade Colonial Portuguesa tocava os hinos do Brasil e da Bélgica. Os visitantes estavam entusiasmados com a recepção calorosa. Defronte à Praça Barão do Rio Branco, a companhia do Tiro 11 formou duas linhas de apresentação. O cortejo prosseguiu sob aplausos e gritos de vivas pelas ruas Senador Feijó, Rangel Pestana e Ana Costa, descendo até a praia, até chegarem ao suntuoso Hotel Parque Balneário, onde faustoso almoço fora preparado.

Alberto I e Elizabeth da Bavária durante visita à cidade mineira de Belo Horizonte.

Os compromissos de Alberto I e seus acompanhantes na cidade incluíram visitas à Cia Docas, à Alfândega e aos armazéns belgas, que se espalhavam pela rua Amador Bueno. Já no final do dia, a comitiva se dirigiu à estação de trem do Valongo, onde uma composição fora especialmente preparada para levar de volta à capital bandeirante o ilustre soberano europeu, que deixou marcas indeléveis na vetusta cidade portuária.

Eram 16h10 quando a locomotiva especial silvou o apito e iniciou sua marcha na direção da Serra do Mar, a grande cadeia de montanhas que encantou o monarca europeu, tanto quanto o calor do entusiasmo dos santistas, que por um dia se tornaram súditos do altivo Rei Alberto I.

VIA EM HOMENAGEM

A passagem de Alberto I pela cidade de Santos foi lembrada em 16 de fevereiro de 1921, quando a municipalidade resolveu transformar o antigo caminho utilizado pela Companhia de Guarujá (empresa que explorava o serviço de balsa), indicado na planta cadastral do município de Santos como a rua nº 250, na Ponta da Praia, como a avenida Rei Alberto I.

MORREU FAZENDO O QUE AMAVA

O Rei da Bélgica, Alberto I, morreria aos 58 anos de idade, no dia 17 de fevereiro de 1934, em decorrência de um acidente de escalada em Marche-les-Demes, na região de Ardenas (cadeias montanhosas situadas entre a Bélgica, Luxemburgo e França). Deixou o trono para o filho, Leopoldo (o que o acompanhara na visita a Santos).