
Novas evidências históricas revelam que a prática do remo em Santos remonta a um período anterior ao registrado pela historiografia regional, desafiando narrativas consolidadas.
Santos, 28 de junho de 1872. Nas serenas águas do lagamar do porto santista, diante do crepúsculo dourado de um final de sexta-feira, a cidade santense testemunhava, encantada, o embate de jovens remadores portugueses e ingleses que, organizados pelo novel Club Neptuno, disputavam de forma pioneira, provas do esporte do remo, uma atividade que era praticada no Brasil ainda de maneira informal, desde a década de 1850.
O povo santista se aglomerava na faixa da praia, desde a Estação do Valongo até as cercanias dos quartéis (na altura da atual Alfândega). Nas margens, senhoras e cavalheiros assistiam a cada movimento com seus corações em festa. A presença da Exma. Sra. D. Minna Murray, responsável pela distribuição dos prêmios e cujo nome batizava um dos barcos competidores, conferia ao evento um toque de elegância e sofisticação, enquanto os Srs. Murray (gerente da Companhia de Melhoramentos) e Barboza Junior (um comerciante de óleos combustíveis), ambos diretores do Neptuno, garantiam a lisura dos resultados como juízes de chegada e saída. Três páreos haviam sido colocados na disputa, entusiasmando todos os presentes.
A primeira prova envolveu os outriggers de quatro remos (e um patrão) “Minna” e “Nicota”, tripulados por amadores. Ambos os barcos erguiam-se como dois cavalos de batalha a deslizar pela superfície cristalina. O prêmio? Cinco bonnets (bonés) bordados com o distintivo de vencedor, reluzindo como coroas de glória. O embate foi feroz, e cada remo parecia rasgar com extrema facilidade as águas salobras do lagamar santista. Com uma margem diminuta — praticamente um fio de espuma a separá-los —, o Minna triunfou, deixando no Nicota o consolo de uma derrota honrosa, onde o esforço ecoou mais alto que o resultado.
O segundo páreo, em botes, era formado por barcos tripulados por meninos do Arsenal da Marinha (da Escola de Aprendizes Marinheiros), que mostravam que a coragem não conhecia idade. Ao final, o “Neptuno”, pertecente ao clube anfitrião, acabou por superar o “Amphitrite” e embolsar um prêmio de vinte mil réis (equivalente a R$ 500 nos dias atuais), dado a cada remador.
O terceiro páreo trouxe um duelo de nações européias: o “Neptuno”, voltando às raias, defronte ao Valongo, desta vez comandado por membros da colônia portuguesa associados do Clube Neptuno, enfrentava outros quatro botes, todos tripulados por ingleses. Era, enfim, uma disputa que refletia um embate de culturas, em alta velocidade. Sob os aplausos inflamados da multidão, o “Neptuno” cruzou a linha de chegada, vitorioso, conquistando os trinta mil réis da premiação prevista para a prova (R$ 750 nos dias atuais), para cada remador.
Quase ao anoitecer, surgiu um desafio final, nascido de improviso, opondo de um lado, um dos organizadores da competição, J.J. Barboza Junior, diretor do Club Neptuno, e do outro, o comandante do Arsenal da Marinha, tenente Palmeira, que se orgulhava de treinar os meninos da Escola de Aprendizes Marinheiros. Sob os olhares atentos da multidão e ao som da banda da Sociedade Luso-Brasileira, o “Neptuno” mais uma vez cruzou primeiro a linha de chegada, selando seu destino na prova.
No início da noite, no Hotel Brasil, os remadores de todas as turmas reuniram-se com os diretores do Club Neptuno para celebrar. O jantar, regado a saudações fervorosas e brindes de entusiasmo, tornou-se o coroamento de um dia inesquecível. Sob a luz das lamparinas, a cidade ecoava um só sentimento: a união pelo remo, um esporte que prometia arregimentar multidões.
A narrativa aqui apresentada se inspirou em uma reportagem publicada na edição de 2 de julho de 1872 da “Revista Commercial”, primeiro periódico da história de Santos, fundado em 1849. E o que poderia ser encarado apenas uma história cotidiana, ganha aqui, diante de olhares experientes, um caráter extraordinário por revelar, pela primeira vez na nossa historiografia, que o esporte do remo já era praticado nas águas de Santos muito antes do que se acreditava.
Até o final do século XIX, a narrativa predominante era de que o remo teria surgido em Santos apenas na década de 1890, quando teriam começado a despontar os primeiros clubes náuticos da região, como o Santista (1893) e o Internacional (1898). Antes desse período, na década de 1880, porém, dois grêmios destacavam-se pela rivalidade nas águas: o Nacional, formado por brasileiros e portugueses, e o Internacional (uma versão mais antiga do atual), composto por ingleses e alemães. Da fusão de ambos é que nasceu o Regatas Santista, considerado até hoje o mais antigo grêmio náutico da cidade. Contudo, a versão de Santos pioneira no remo brasileiro sempre encontrou concorrência nas histórias do remo carioca e gaúcho, que também reivindicavam o título de berço do esporte no Brasil.
Mudando tudo
Novas evidências documentais indicam, entretanto, que o Rio de Janeiro, de fato, é quem despontou como pioneiro na prática do remo no Brasil, ganhando estrutura a partir de 1862 com o surgimento do Club Regata e do British Rowing Club, ambos impulsionados pela presença de imigrantes ingleses. Em 1867, a fundação de um novo grêmio com o nome “Regatas” consolidou ainda mais o esporte. Mas foi em 1874, com a criação do Club Guanabarense, que o remo no Rio de Janeiro ganhou força definitiva.
Diante desta sequencia, Santos parece ter seguido logo atrás, antecedendo contudo os gaúchos, que registram um início em 1888, com o Ruder-Club Porto Alegre, de origem alemã. Porém, de modo ainda informal, tal como os cariocas, os santistas já disputavam provas individuais de remo desde a década de 1860, sem qualquer estrutura organizacional. Uma evidência disso é a pequena nota publicada na mesma “Revista Commercial”, na edição de 13 de junho de 1863, que relatava uma regata disputada por botes. Embora essa competição não se configurasse como uma prova náutica clássica, com as tradicionais distâncias de 1.000 ou 2.000 metros, tratava-se, de fato, de uma disputa de remo. A prova era de longa distância e abrangia aproximadamente 5,7 milhas náuticas (cerca de 9,77 quilômetros), percorrendo o trajeto entre a antiga praia do Consulado — localizada onde hoje está a Bolsa do Café — até a Fortaleza da Barra, na Ponta da Praia.
Esta prova, contudo, não estava atrelada a nenhuma agremiação náutica. Assim, a evidência do Club Neptuno, de 1872, suplanta os grêmios gaúchos, fazendo com que Santos seja a segunda cidade brasileira a testemunhar o esporte mais popular do país na virada dos séculos 19 para o 20.